“(…) Quando um amigo parte em viagem e me pergunta se desejo que me traga alguma coisa, respondo sempre o mesmo: “Traz-me uma história”. É através das histórias que melhor vemos o mundo e nos deixamos surpreender por ele. Uma história é um presente magnífico, porque é um fragmento de vida, não apenas uma paisagem…”
José Tolentino de Mendonça
A propósito das viagens que se fizeram e ainda se fazem, neste outono ainda com ares de verão, viagens reais e físicas, outras virtuais e imaginárias, esta citação desperta-nos para uma perspetiva sobre o que de uma viagem merece ser destacado. A sensibilidade de José Tolentino Mendonça que tanto admiro, e onde me faz, ou melhor, nos faz lembrar o que de melhor poderemos reter de uma viagem: uma história. Na verdade, a nossa vida é composta de fragmentos de histórias tecidos por muitos fios que se entrelaçam, ora num emaranhado complexo e difícil, ora numa simplicidade flutuante que rapidamente encontra caminho. Sem histórias, as nossas memórias divagam e, passado algum tempo, esmorecem até ao esquecimento. Quando trazemos um objeto de uma viagem ele pode remeter-nos para o local onde o compramos, para a pessoa a quem o vamos destinar, mas ele não faz propriamente parte de uma história. É apenas um adereço. Agora, o que retivermos, sobre as pessoas com quem cruzamos, os lugares enquanto cenário de histórias que vamos tecendo, então, não só ficaremos mais ricos como enriqueceremos os ouvintes do nosso relato. As recordações físicas que comprámos não passam de objetos estáticos que em breve serão arrumados fazendo-se substituir por outros. As histórias ficam para sempre na memória.
Miguel Torga dizia que o mais importante numa viagem é a partida e não a chegada. Porque partir coloca-nos no patamar do sonho, da aventura, da motivação e das expectativas.
Faz parte da condição humana desejarmos crescer e singrar em vez de acomodar-nos. Ainda bem que assim é. As viagens levam-nos à descoberta, a novas aprendizagens e à alegria da partida.
Miguel Torga dizia que o mais importante numa viagem é a partida e não a chegada. Porque partir coloca-nos no patamar do sonho, da aventura, da motivação e das expectativas. Eu reconheço que a partida está salpicada destes ingredientes tão importantes. No entanto, vejo a chegada como um enriquecimento imenso pelo acumular de experiências. Daí, considerar a partida e a chegada como momentos igualmente importantes. Direi até, após uma viagem, se não tivermos nenhuma história para contar, então, ela não valeu realmente a pena.
Seguindo o conselho do teólogo e escritor Tolentino Mendonça, vou relatar-vos uma história que faz parte do património coletivo do povo senegalês e que, ao conhecê-la e vendo in loco essas vivências fez-me ter a certeza que não a esquecerei como memória de viagem e também será uma dádiva aos amigos a quem a vou contar.
Fazia parte da tradição cultural senegalesa de só enterrar os que trabalham a terra. Se se tratassem de trovadores, homens e mulheres das artes, não tinham esse direito. Eram colocados dentro dos troncos dos baobás (imbondeiros ou embondeiros) dado que o seu tronco pode atingir dimensões enormes, sendo oco por dentro, o que permitia tal processo. Esta árvore, símbolo do Senegal, está carregada de uma simbologia muito especial. É considerada o pilar da terra e tem a função de conectar as forças do mundo sobrenatural ao mundo imanente. Segundo uma antiga lenda africana, se um morto for sepultado dentro de um baobá, a sua alma irá viver enquanto a planta existir. E o baobá pode viver mais de dois mil anos!
Voltando à nossa história, depois da independência do país, o Presidente eleito decretou a abolição dessa prática e todas as pessoas passaram a ser enterradas. O que é certo é que, no ano seguinte, as chuvas não chegaram, algo raro naquela região. Muitos nativos se questionaram se a causa não teria sido essa decisão contra a natureza. No entanto, a lei manteve-se e as chuvas voltaram, indiferentes às decisões dos humanos.
Fica a história para ser lembrada a promover uma reflexão: os trovadores (artistas de várias áreas) são, na verdade, seres especiais. Eles permanecerão para sempre porque o seu legado não morre nunca, sejam enterrados ou colocados em baobás.
Arcelina Santiago
Professora