Demasiado pequenos para sermos justos

Há um atraso de 67 anos – 66, se formos exatos no cumprimento dos tempos que ditava a lei – na atribuição de honras de Panteão Nacional a Aristides de Sousa Mendes. Há um atraso, e um pequeno, vamos chamar-lhe, tropeço, para nos referirmos à falta de disponibilidade do deputado do Chega, para firmar aquilo a que mais ninguém se opôs. Como se poderiam opor à entrada do antigo cônsul português em França para a lista dos maiores heróis da nação?

Como poderia Aristides de Sousa Mendes, que durante a II Guerra Mundial, salvou milhares de judeus e não judeus refugiados da perseguição nazi, não ser alvo de tamanho reconhecimento da nossa parte? Não é lá grande coisa como homenagem, mas é a maior que temos por cá (talvez possamos um dia rever isto e, por exemplo, fazer como em Israel, cuja mais bonita homenagem a Aristides se fez através da plantação de dez mil árvores em sua memória. Celebrar a vida com vida).

“Como poderia Aristides de Sousa Mendes, que durante a II Guerra Mundial salvou milhares de judeus e não judeus refugiados da perseguição nazi, não ser alvo de tamanho reconhecimento da nossa parte? Não é lá grande coisa como homenagem, mas é a maior que temos por cá”

Mas a pergunta mais correta (para mim, a primeira. Tenho pelo menos mais uma) é talvez outra: Como pudemos demorar tanto tempo? Já havíamos reconhecido a sua desobediência à Circular 14 do Estado Novo, que proibia os cônsules de passar vistos sem autorização prévia de António de Oliveira Salazar. Mas as honras de Panteão Nacional são o que de mais alto podemos mostrar como reconhecimento aos nossos. Tivemos vergonha? Medo de ferir suscetibilidades? Não concordámos na dimensão da sua atitude? Receio das vozes que ladram?

Durante a cerimónia, a palavra que mais se ouvia era “reabilitação” para falar do nome de Aristides de Sousa Mendes. Como se estivesse decrépito, como se precisasse de uma nova imagem. Como se salvar milhares de vidas não fosse por si suficiente. Como se uma simples assinatura firmada num consulado, em postos fronteiriços recônditos ou mesmo no meio da rua, além das portas da sua própria casa, que abriu para refugiar mais uns tantos, não fossem, por si, autênticos atos de heroísmo pelos quais haveria de pagar bem caro: ficaria sem o cargo, ostracizado, em dificuldades financeiras. “Era realmente meu objetivo salvar toda aquela gente, cuja aflição era indescritível”, diria sempre. Se disto nos orgulhamos apenas passados 67 anos, somos demasiado pequenos.

A minha segunda questão é: Como podemos colocar Aristides e Eusébio ou Óscar Carmona lado a lado naquela que é a homenagem maior do país aos seus maiores? Atente-se no que diz a lei: “As honras do Panteão destinam-se a homenagear e a perpetuar a memória dos cidadãos portugueses que se distinguiram por serviços prestados ao País, no exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade”.

Eu, que ainda percebo alguma coisa da Língua Portuguesa, vejo claramente Aristides a distinguir-se “na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade”. Vemos todos (menos o tal deputado, claro). Parece que a lei foi escrita para ele, ainda que o tenhamos concretizado com tantos anos de atraso.

Os Presidentes da República, Teófilo Braga, Manuel de Arriaga e Sidónio Pais, ali entraram por terem comandado o país no mais alto cargo político. Sem contestação. Pedro Álvares Cabral, o Infante D. Henrique, Vasco da Gama e Afonso de Albuquerque escreveram o nome de Portugal pelas terras e mares que descobriram. Tudo certo.

Na criação literária lá pusemos também os nomes de Luís de Camões, Almeida Garrett, João de Deus, Aquilino Ribeiro, Guerra Junqueiro e Sophia de Mello Breyner, que também correspondem ao orgulho nacional. Tal como Amália Rodrigues, tanto na “expansão da cultura portuguesa”, como na “criação artística”. Por fim, Humberto Delgado é óbvio demais (talvez o tal deputado não tivesse disponibilidade para votar nessa altura também).

Só não consigo encontrar forma de encaixar o General Óscar Carmona ou o Eusébio em nenhuma das condições requeridas. E custa-me. Custa-me ver Aristides de Sousa Mendes no mesmo nível de distinção. Essa é a minha segunda questão: Como podemos igualá-los? Se Carmona foi o Presidente da República que mais tempo esteve no cargo, foi também quem trouxe a Ditadura Militar e abriu as portas ao Estado Novo. Apesar de ter entrado no Panteão Nacional num período anterior à democracia, é disso que nos queremos vangloriar? E nem por um momento estou a dizer que devemos ignorar a figura que foi Eusébio. É personalidade para merecer o nosso reconhecimento. Mas não este, que queremos que seja a homenagem dos heróis, dos que transcendem.

A Eusébio foram dadas honras de Panteão Nacional, pode ler-se na resolução da Assembleia da República, pelo “símbolo nacional, o homem solidário, o futebolista e o desportista excecional, evocando o seu estatuto de verdadeiro marco na divulgação e na globalização da imagem e da importância de Portugal no Mundo”. Forçado? Pois, também me parece. Valham-nos as palavras que, para lá da lei e baralhando tudo um pouco, nos permitem o que quisermos. Ainda bem que nos podemos orgulhar de muitos portugueses em diferentes áreas, ainda bem que temos bons exemplos – profissionais e humanos. Mas cada história na sua devida homenagem, cada um no seu devido lugar.

A verdade é que a proposta para que o futebolista ali fosse sepultado não demorou nem um terço do que demorou para fazermos o mesmo com o cônsul que salvou tantas vidas. Na semana seguinte já se preparava o processo e, pouco mais de um ano depois, lá estavam as televisões em direto para a cerimónia da nossa homenagem maior. Quando for o Cristiano Ronaldo, já nos estou a ver até a mudar a lei para que entre no Panteão por via verde, sem ter que esperar por votações, decretos ou os tempos que até agora estipulámos.

Aristides de Sousa Mendes está no Panteão Nacional por ser o mínimo e o máximo que um herói pode ser: justo. Assim se disse dele, o “Justo entre as Nações”. E nós, que pomos os portugueses maiores, os verdadeiros heróis, que nos fazem ser um exemplo para o mundo, ao lado dos outros, somos demasiado pequenos – além de atrasados – para sermos verdadeiramente justos, já que a justiça a Aristides está, finalmente, feita.