Rainhas há muitas, mas quando dizemos, simplesmente, “a Rainha” falamos sempre de Isabel II. A sua desaparição deixou muito poucos indiferentes, a nível planetário – monárquicos e republicanos, por igual. Sentimos a perda como se fosse nossa – do nosso país ou comunidade, ou até da nossa família.
E, tratando-se de uma figura ímpar e enorme, quem resiste à tentação de desfiar as suas próprias memórias de um encontro havido com ela, ou de um simples vislumbre da sua presença? Não serei exceção…
Precisamente como o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, (sou da mesma geração), vi-a, pela primeira vez, em 1957, de relance, alinhada numa rua cheia de gente. No meu caso, não em Lisboa, mas ao fundo da Avenida de Gaia, que o cortejo de vistosas viaturas descia lentamente, a caminho da ponte sobre o Douro. Estava lá, no meio de dezenas de colegas do Colégio do Sardão, todas de uniforme de festa, formando uma longa mancha azul marinho na orla do passeio. Ensaiadas pela nossa professora de inglês, a muito britânica Madre Mary King, cantávamos, alto e bom som, o God Save The Queen. Ouvindo o hino, a destinatária terá mandado parar o carro. Por uns segundos, olhou-nos, com simpatia, sorrindo e acenando, tal como o marido. Ele mesmo à nossa frente, a pouco mais de um metro de distância, pois, de comum acordo, tínhamos escolhido o lado da Avenida onde melhor o poderíamos ver. Estávamos, naturalmente, mais interessadas no formidável Duque de Edimburgo do que na discreta monarca.
Quase três décadas depois, na meia década de 80, Isabel II voltou ao nosso País, em visita oficial, e eu, então no Governo, tive várias oportunidades de a cumprimentar – nada mais do que breves e formais saudações. Não guardo recordação particularmente emotiva da sua postura sereníssima e hierática… Foi, de novo, o Príncipe Filipe, quem mais me impressionou. Com ele, sim, aconteceu, no Palácio da Ajuda, uma inesperada e divertida conversa a dois, a propósito da vistosa faixa da condecoração (a OBE), que cruzava a metade superior do meu vestido comprido…
Sem mais contactos pessoais, fiz a minha “estrada de Damasco”, em relação à Rainha, nas últimas décadas, à medida que fui reconhecendo, não só a sua surpreendente disponibilidade para acompanhar os novos tempos e as novas gerações, (conciliando progresso e tradição, como só os mais velhos podem fazer, quando mantêm o espírito bem aberto), como a sua importância enquanto “Mulher de Estado”, ou seja, enquanto trunfo na argumentação em favor da igualdade de género. Redescobri Isabel II como verdadeiro ícone para causas que, há muito fiz minhas, na luta contra discriminações, que dominam as nossas sociedades, de forma clara ou larvada: o idadismo e o sexismo.
No início do século XXI, Isabel II era já a mais poderosa e consensual imagem de empoderamento no feminino
De facto, a idade tornou-a mais sábia e verdadeiramente venerada e permitiu-lhe ir, a seu modo, revelando a pessoa por trás da “persona”. No início do século XXI, era já a mais poderosa e consensual imagem de empoderamento no feminino. E não se diga que o seu poder é meramente simbólico, nas monarquias constitucionais, porque, tendo essa componente, pode ir muito além dela, e foi, com Isabel II, cujo poder era imaterial, derivado de um imenso prestígio e autoridade.
Foi Rainha do Reino Unido pelo acaso do seu lugar numa linha de sucessão dinástica, mas líder da Commonwealth, por mérito pessoal.
Contrariando presságios e vaticínios, a união duraria uma vida inteira de esplêndida cumplicidade, apesar de subverter a tradicional divisão de papéis conjugais: ela era a chefe de Estado, e reinava sozinha, com um poder indivisível, enquanto ele assumia plenamente as responsabilidade familiares e sacrificava uma muito promissora carreira militar, ficando publicamente “desempregado”. Em suma, assumia a condição de “grande homem atrás de uma grande mulher”. Teve de reinventar ocupações e fê-lo, inteligentemente, em iniciativas e tarefas de enorme importância, embora, as mais das vezes, quase invisíveis, porque deixava sempre o palco à sua Rainha.
Isabel II, em anos recentes, com a autoconfiança que a idade permite, veio reconhecer, publicamente, o seu aporte, por tanto tempo mantido na sombra, mas não é certo que a História lhe dê semelhante reconhecimento. Assim aconteceu com as mulheres consortes, ao longo dos tempos. Só agora, começa a acontecer com alguns, ainda raros, homens. A injustiça é da mesma ordem e deve mover-nos, do mesmo modo, a denunciá-la…
3 – Ninguém fez o elogio fúnebre de Filipe Mountbatten sem o relacionar com a sua mulher – e, a meu ver, bem. Nessa lógica, eu não gostaria de escrever sobre Isabel II, sem falar do marido. Sabe-se hoje que ele foi o seu principal conselheiro, o seu ghost writer e, seguramente, não por complacência. Sabia ouvir, julgar e decidir. Tinha boas razões para confiar em Filipe, na sua mundivisão e audácia, que temperava com o filtro da sensatez e da prudência, que a caracterizavam. A ele se deve, por exemplo, a abertura a um novo relacionamento com os media, que começou pela inédita transmissão em direto da cerimónia da coroação da Rainha (vencendo um braço de ferro com Churchill, que era absolutamente contra), a modernização da monarquia (ele não acreditava, no que o acompanho inteiramente, que a realeza se banaliza se perder o seu “mistério”, pela eliminação das distâncias com o “povo”) e a já referida reconfiguração da Commonwealth, que reflete as suas causas culturais e ambientalistas, a sua aposta na força da convivialidade. O “fenómeno Isabel II” não teria, sem essa comparticipação do seu consorte, a dimensão universal, que celebramos em breves dias deste setembro de 2022, lembrando as sete longas décadas do seu reinado.
Manuela Aguiar
Ex-vereadora da CM Espinho e secretária de Estado das Comunidades