A pele de Espinho

O meu vizinho da frente tinha um portão de madeira que fazia um enorme barulho quando as bolas lá batiam. Quando eram poucos a jogar, o portão servia de baliza única para os remates. O ruído da bola a bater no portão chamava a atenção dos miúdos da vizinhança que aos poucos lá se iam juntando para formar equipas ao final da tarde depois da escola. Duas pedras em cada baliza era o que bastava. No princípio dos anos 90, a nossa rua ainda tinha muitos buracos e, tirando os moradores, a maioria dos carros evitava aquela rua o que nos deixava à vontade para jogar longos períodos sem sermos interrompidos. Quando aparecia um carro, tínhamos que arrumar as pedras, mas o jogo continuava. Não havia fora de jogo, mas a sanção social de ser acusado de “jogar à mama” impedia-nos de fazer o truque de ficar parado na baliza adversária à espera que a bola lá chegasse. Os guarda-redes iam trocando porque ninguém gostava de ficar à baliza. Os dois melhores jogadores escolhiam as equipas alternadamente e havia poucas coisas mais humilhantes do que ser um dos últimos a ser escolhido. O que vale é que normalmente eram sempre os mesmos a ficar para o fim e já se tinham habituado. Um desses que se tinha habituado a ficar para último conseguiu uma promoção quando decidiu que gostava de jogar à baliza. Os jogadores da equipa que ficassem com ele evitariam assim ter de fazer o seu turno entre os calhaus. O jogo acabava aos 10, mas podia-se começar outro enquanto houvesse luz ou fossemos chamados para jantar. Havia longas discussões sobre se a bola que tinha passado acima da pedra tinha entrado ou ido ao poste.

A Dona Alzira ainda usava a régua quando em 1989 entrei na escola primária. Apesar de ser um bom aluno, alguns momentos de indisciplina valeram-me a experiência do “tulicreme” que levava sem grandes queixas.


Ninguém se atirava para o chão ou fazia fitas. Numa dessas tardes apareceu um senhor de mota que recomendou a alguns de nós irmos às captações do Espinho. Eu lá fui. Nenhum dos outros conseguiu convencer os pais a fazer aquela viagem de 5 kms de Paramos até ao campo de treinos a um sábado de manhã. Não tive grande sucesso. Os outros eram bem melhores que eu.

A Dona Alzira ainda usava a régua quando em 1989 entrei na escola primária. Apesar de bom aluno, alguns momentos de indisciplina valeram-me a experiência do “tulicreme” que levava sem grandes queixas. As turmas da Dona Alzira, diziam, iam para o ciclo muito bem preparadas. Eram sempre as melhores. E fomos. A ida para o ciclo envolvia mudanças grandes. Para estar às 8.30 na escola, era preciso acordar antes das 7, caminhar quase dois quilómetros (no escuro, no inverno) para apanhar um autocarro antes das 8. Apesar do percurso ser só de 5 quilómetros, demorava perto de meia hora porque a camioneta parava de 300 em 300 metros. O percurso era tão lento que em certas circunstâncias quando perdíamos a camioneta na nossa paragem poderíamos apanhá-la correndo desalmadamente até à próxima paragem. Apesar do risco de ter crianças de 10 anos a correr ao longo de uma estrada nacional, não me lembro de ter visto um acidente.

A velhinha Domingos Capela não parecia de todo uma escola. Era um grande casarão com salas de aulas onde seriam os quartos e um ginásio onde deveriam ser estábulos, uns anexos ou algo construído posteriormente. Com pouco espaço de recreio e umas redes enormes à volta, muitos miúdos penduravam-se nas redes durante o tempo de recreio e entretinham-se a fazer ruídos a quem passasse na rua. Quem não soubesse que era uma escola, poderia pensar que estava perante um hospício. O hospício abria portas à hora de almoço. Não havia alternativa: a escola não tinha cantina e as crianças de 10-11 anos tinham que ir comer à cantina da Sá Couto. Todos os dias saíamos da nossa escola velha e sem condições e íamos até à escola (na altura relativamente nova) que ficava a uns 500 metros. Na altura não percebíamos bem o porquê de nos terem enfiado naquela escola em vez da escola nova. Pela proximidade não poderia ser porque as duas escolas ficavam na mesma freguesia. Mas assim era: os alunos da freguesia de Espinho e aqueles cujos pais conseguiam dar a volta ao sistema iam para uma escola com espaço, cantina e todas as outras condições que uma escola deve ter. Os outros, os ciganos, os filhos do bairro piscatório, os filhos das freguesias distantes do centro eram enfiados no hospício. Aquela escola, apesar de tudo, tinha algumas vantagens. Aprendíamos desde cedo a andar à porrada, coisa que a régua da Dona Alzira nos tinha impedido de aprender na escola primária. Aprendíamos também que, à falta de músculo, a velocidade e a capacidade de ter amigos com o tamanho certo eram essenciais à sobrevivência. Coisas que não se ensinam na sala de aula. Como tínhamos que sair da escola para comer, podíamos deambular pela cidade até às aulas da tarde. A praia ficava longe, mas a “lojinha” ficava perto. A “lojinha” vendia gomas e ficava estrategicamente no caminho que tínhamos que percorrer para chegar à cantina da outra escola. Entre os benefícios de estar naquela escola estava a possibilidade de volta e meia poder almoçar gomas. Ali ao lado da escola ficava a casa do Fernando Couto que ainda não tinha emigrado na altura e que, por isso, era brindado com cânticos de apoio dos miúdos que aguardavam as aulas da tarde praticamente todos os dias.

A professora de Educação Física era casada com o treinador de voleibol do Espinho. Como bom aluno, tive a certa altura o privilégio de conhecer dois jovens jogadores com vinte e poucos anos chamados Miguel Maia e João Brenha. Quando tinha tardes livres, ia ver os treinos de voleibol. Recordo ter achado piada ao facto de os jogadores de voleibol do Espinho acabarem os treinos com um jogo de… futebol. Reconhecendo a minha presença habitual nos treinos, o João Brenha veio-me oferecer a camisola que usou num dos seus primeiros torneios de voleibol de praia, em Espanha. Apesar de ficar extraordinariamente grande no corpo de um miúdo de 11 anos, passei a usá-la nas aulas de Educação Física. Voltei a usá-la 2 anos quando vi aqueles dois desconhecidos do Mundo do voleibol atingirem o 4º lugar nos Jogos Olímpicos de Atlanta. Ainda hoje não me perdoo por ter perdido essa camisola entre as mudanças que fui fazendo ao longo da vida.

Cinco minutos depois de ter começado a escrever este texto, atingi o limite de caracteres. Fica muito por contar. Levamos a nossa terra na pele para onde quer que vamos. Foi um prazer escrever na Defesa de Espinho ao longo de quase 3 anos. Até já.

Carlos Guimarães Pinto

Colunista