A guerra que partilhamos

A guerra sempre foi longe para nós, aqueles que nunca lá estivemos. Estudámos nos livros de História, ouvimos relatos, vimos fotos e assistimos a muitos filmes.
Lembro-me de assistir em direto na televisão aos ataques norte-americanos ao Iraque em jeito de resposta ao 11 de setembro.
Sem redes sociais, a televisão era o mais imediato e o mais perto que tínhamos de tudo, dos conflitos também. E era, na altura, muito perto, ainda que o Iraque fosse – como continua a ser – muito longe, ninguém sabe muito bem onde, lá para o Médio Oriente, perdido nos seus conflitos constantes.

Acho que a proximidade relativa veio com a guerra na Síria – outro sítio muito longe, sabe-se lá onde. Com mais tecnologia e, se o direto não era ainda no exato local dos acontecimentos, era possível estar muito perto e a quantidade de imagens que nos chegavam faziam o seu papel de nos pôr bem perto dos acontecimentos, a par de mais acontecimentos, tínhamos
mais informação do que se passava no terreno (não sendo isso, claro, condição para melhor informação, para um conhecimento mais preciso das coisas). Lembro- me de ver repórteres a recolher imagens lado a lado com quem combatia, lembro-me das várias perspectivas nada
profissionais ou editadas daqueles corpos no chão depois de descoberto o ataque com armas químicas. Já não eram coisas que ficávamos a saber através dos livros na escola. Era ali, praticamente, e tanto quanto possível, no momento.

Ainda assim, eram imagens que nos chegavam, se não com origem na comunicação social que acompanhava o conflito, pelo menos após o filtro jornalístico. Depois vieram as redes sociais. O Facebook primeiro para dar palco a quem quisesse partilhar acontecimentos da sua vida – e se a vida está em guerra, pois é isso que se partilha. Depois o Instagram, mais imediato,
que recordou a possibilidade de entrarmos em direto…da guerra. E, por último (deve haver muitas mais, claro, os meus conhecimentos é que não vão mais além disto) o Tik Tok, que trouxe aos utilizadores, imagine-se, a possibilidade de criar “tendências” e vídeos que haveriam de viralizar a partir…de cenários de guerra.

Porque é assim que as coisas, as de maior grandeza e as situações do dia-a-dia, se tornam suportáveis: suavizando-as. Banalizando-as.
Ridicularizando-as.

Não estamos a falar de filmar acidentes de carro, de tirar fotografias a incêndios florestais, aquele tipo de tragédias com que nos podemos deparar facilmente.
Não são exercícios, treinos, simulações.

Estamos a falar de partilhar fotos de nós próprios metidos em trincheiras na frente de batalha na Ucrânia, de editar vídeos de mísseis a ser lançados com músicas a ridicularizar o inimigo, de filmar o momento em que alvejamos um drone que vinha na nossa direção com a mensagem “Feliz Ano Novo” ou “para as crianças”, de nos pormos a fazer as danças da moda quando temos por trás um verdadeiro cenário de guerra. Nos tempos sem grande ação, criamos conteúdos para as redes sociais como refeições partilhadas com gorros de Natal na cabeça, brincadeiras no gelo, um cigarro ao lado dos colegas (um deles
que, curiosamente, tem sangue a escorrer- lhe da cabeça) e seflies, muitas selfies, quase ao estilo “olhem para mim, estou a combater os russos”, claro, pois é de redes sociais que estamos a falar.
A maior parte das situações de que aqui falo, venho assistindo a partir dos vídeos partilhados pelos soldados que combatem na Ucrânia num canal na plataforma Telegram. São centenas de vídeos ali para toda a gente ver, onde, além destes momentos “descontraídos”, alguns com
autênticas produções audiovisuais, também partilham o carregar das armas, os HIMARs a lançar míssil atrás de míssil, imagens dentro dos tanques a disparar e, enquanto uns respondem aos ataques do inimigo que tão bem se ouvem há sempre alguém que está a filmar.. Afinal, é o dia-a-a-dia que alimenta as redes sociais, não é?

E tudo isto nos está a parecer muito normal.
Nós que não sabemos o que é a guerra, achamos que a guerra é esta leveza, estas imagens divertidas. Numa mão, os soldados têm uma arma, na outra um telemóvel “inteligente” (e ainda há os que têm uma câmara amarrada ao capacete, para nos colocar ainda mais “dentro” da ação e nos ajudar a não perder nada).

Este tipo de conteúdo, esta informação é muito mais fácil de receber (não posso dizer absorver, porque o scroll não é o maior amigo da absorção do que quer que seja) do que as reportagens feitas pelos repórteres.
Até porque não tem imagens de corpos mutilados, de mortos espalhados pelo chão, de edifícios desfeitos. Esse é o conteúdo que, quase 11 meses depois, passou de assustador – porque, afinal, a Ucrânia é já ali – para banal e já nos faz mudar de canal. Já tudo se mistura e, na verdade, as guerras são todas iguais.
Quase 11 meses depois, se calhar, afinal a Ucrânia é lá longe.

Entre imagens que já não diferenciamos e soldados a fazer danças no Tik Tok e a ridicularizar o exército russo, a nossa opção é fácil: escolhemos a guerra da segunda.

Porque é assim que as coisas, as de maior grandeza e as situações do dia-a-dia, se tornam suportáveis: suavizando-as. Banalizando-as. Ridicularizando-as. Ficam mais pequenas, incorporadas na rotina de fazer scroll ao longo do dia e siga que a vida continua.

Com os telemóveis ditos inteligentes, com as redes sociais, a guerra está mais perto e, ao mesmo tempo, por superficial e sujeita ao scroll, mais suave. Mais longe de nos tocar. Ganhou um novo papel: o de nos entreter os momentos de ócio.

Cláudia Brandão

Colunista