Transição digital ou transposição da burocracia do analógico para o digital?

As tecnologias digitais estão em todo o lado, a todo o tempo, num sistema metabólico automático de utilização inconsciente, que, como respirar, não nos lembramos que o fazemos, advindo tal consciência no modo comportamental ou voluntário.

Têm um impacto profundo no nosso modo de vida, de relação, sociabilização, de comunicação, cultura, educação, trabalho, entretenimento, ócio e lazer, e no modo de trabalho e de fazer negócios, entre outros, afectando pessoas, organizações, públicas e privadas, e empresas.

A transição digital, a digitalização e desmaterialização, apresentam enormes potenciais para o crescimento e desenvolvimento das economias, desígnio das políticas públicas europeias e nacionais, representando oportunidades para a melhoria de níveis de produtividade, favorecendo a inovação, e reduzindo os custos de contexto para cidadãos e dos processos de negócios para as empresas e organizações.

Desde o surgimento e expansão da internet, nas últimas três décadas, assistiu-se a uma transformação assinalável da relação dos cidadãos e das empresas e organizações e no modo de se relacionar com a administração, com enormes avanços, especialmente no recurso a relações e processos remotos e à distância.

Não obstante os progressos visíveis e assimilados no comportamento dos cidadãos, empresas e organizações, a simplificação, desburocratização e alívio dos designados custos administrativos e de contexto não têm evoluído de forma tão positiva e franca quanto os desejos e alcance potencial que as tecnologias digitais oferecem.

Com efeito, se se tem assistido a uma simplificação e/ou facilitação de procedimentos, tem também crescido as exigências quantitativas e qualitativas de relação dos cidadãos e das empresas. Ou seja, ao invés de simplificar, facilitar e aliviar, os “ganhos” de eficiência e de produtividade têm sido “perdidos” na transição para uma maior exigência quantitativa e qualitativa de processos, informações e dados.

Especialmente na esfera do Estado e da Administração Pública, a aceleração da implementação de tecnologias digitais tem servido para exigir dos cidadãos e das empresas um papel activo, constante e reiterado de procedimentos e reporte de dados.

Veja-se o progresso paradoxal das potencialidades proporcionadas pelas tecnologias digitais com o aumento dos designados custos administrativos e de contexto, mormente parta as empresas.

Os custos administrativos e de contexto são considerados dos efeitos negativos decorrentes de regras, procedimentos, acções e/ou omissões que prejudicam a actividade das empresas e que não são imputáveis ao investidor, aos negócios ou à organização.

O indicador global de custos de contexto, publicado pelo INE, após os resultados do 3.º Inquérito aos Custos de Contexto, com referência a 2021, evidencia que os custos de contexto têm vindo a aumentar paulatinamente , registando actualmente um valor de 3,09, numa escala de 1 a 5, superior aos registados em 2017 (30,5) e 2014 (3,04).

O indicador piorou em 8 dos 9 domínios em análise: o único domínio a registar uma melhoria respeita ao domínio da justiça, porém, este mantém-se como o domínio com pior desempenho, ou seja, com o indicador de custos de contexto mais elevado (3,61).

Os domínios administrativos são aqueles que apresentam indicadores de custos de contexto mais elevados, entre os quais: licenciamentos (3,47), sistema fiscal (3,27) e carga administrativa (2,92). Em relação ao inquérito anterior (com referência a 2017), os domínios das indústrias de rede (2,76) e dos recursos humanos (3,10) são os que apresentam os maiores aumentos no indicador de custos de contexto, sendo mais elevados em 2021.

O estudo internacional Economy-wide Indicators of Product Market Regulation, publicado pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), envolvendo 49 economias, por referência a 2018, coloca Portugal em posições desvantajosas no que respeita à simplificação e eliminação de custos administrativos, de contexto e de barreiras económicas.

Portugal posiciona-se na 41.ª posição no que se refere à eliminação de barreiras ou diminuição de custos de contexto nos serviços e indústrias de rede; encontra-se listado na 37.ª posição relativamente à simplificação burocrática e administrativa; e surge na 29.ª posição no que respeita ao envolvimento na economia (regulamentar e legislativa).

Estes custos administrativos e de contexto afectam particularmente as PME, cujo indicador de custos de contexto entre estas empresas (3,15) é superior ao indicador global de custos de contexto registado para a totalidade do universo de empresas (3,09). Note-se que as PME representam 99,9% das empresas em Portugal e empregam 77,8% do pessoal ao serviço nas empresas.

Os custos administrativos e de contexto, e considerando a referência do peso dos custos no volume de negócios das empresas, aos valores do ano de 2020, representariam só por si, mais de 237 milhões de euros, não medindo o custo de oportunidade de ineficiência, por incorrer em custos efectivos e outros custos não medidos, como alocação de meios e recursos próprios, custos de oportunidade, etc.

Aos encargos e custos de contexto das empresas, somam-se ainda os encargos e custos administrativos que acrescem no imenso universo de empresas que contratam com o Estado, Administração e Entidades Públicas, somando-se, entre outros custos, com serviços de inscrição e registo em plataformas de compras públicas, serviços digitais de certificação electrónica, a que mais recentemente se vêm somar as obrigações de emissão de factura electrónica digital e desmaterializada, que passou a ser obrigatória, a partir de 1 de Janeiro de 2023, para todas as empresas que fornecem para o sector público.

No âmbito da aceleração da digitalização e desmaterialização, aos tradicionais custos e encargos com sistemas de facturação, intervenção e consultoria contabilística e financeira, acrescem agora custos de aquisição de serviços de emissão de facturação electrónica, serviços de aquisição de assinatura digital, e serviços de brokerage digital, aos quais podem ainda acrescer outros custos tecnológicos. A todos estes encargos, acrescem, ainda os custos de adaptação de meios técnicos e humanos, de formação e capacitação, e de alocação de recursos humanos.

A aceleração da digitalização e desmaterialização, conjugada com a convivência das tecnologias digitais num sistema metabólico é imparável e inevitável, e desejável tanto quanto contribua para os efeitos positivos potenciais. A transição digital não deverá ser um mero processo anacrónico de transposição da burocracia e dos encargos e custos de contexto do ambiente analógico para o ambiente digital.

Tito Miguel Pereira

Consultor

(Escrito em desacordo ortográfico)