A minha casinha

Nunca tinha dado por mim a pensar nisto:

quando nasci, Espinho era cidade há apenas 7 anos, quase 8;
quando comecei a jogar voleibol, aos 8 anos, Espinho estava nos “sweet sixteen”;
naquele título da Liga de Honra que nos soube a “Champions”, a cidade chegara há pouco à vida adulta;
quando dei o meu primeiro beijo, Espinho entrava nos vintes;
toquei o primeiro concerto, com Hangwire, no “Liceu”, tinha eu 17 anos e esta terra faria 25 poucos dias depois;
e quando saí para a universidade…
e quando trabalhei nos jornais e na rádio…
e quando fui bancário…
e quando voltei aos palcos…
e, de repente, Espinho, faz 50 anos. 50 anos!

Só agora reparo que a minha cidade-materna é, na prática, uma espécie de irmã mais velha. Aquela que vibra com os sucessos dos seus, mais de perto ou à distância, aquela com quem rimos mas que também lá está quando precisamos de chorar.

(e quando comecei a sair à noite…)

Durante uma boa parte da vida, olhamos para os irmãos mais velhos como infalíveis. Os que já viveram muito e já sabem tudo. Até que percebemos que são de carne e osso, têm mais dúvidas do que certezas e chegam primeiro do que nós às fases da vida em que o mar de rosas se transforma em mar de espinhos.

Não é que as cidades também se fazem assim? Espinho emancipou-se por rebeldia, fez-se querer pela beleza, elevou-se de tão teimosa. E encantou-nos (ai, se encantou), a nós, que jurávamos a pés juntos não querer outro ar, outras praias, outros quarteirões, outras ondas.

(e quando passeava com os meus cães no parque…)

Mas depois vem “aqui não se passa nada”, “a cidade está feia”, “já viste que foi o primo do tio do afilhado que teve direito àquilo?”, “estas obras não têm jeito nenhum”, “isto está tudo ao abandono” ou “os gajos é que se orientam!”. Porque, afinal, os irmãos mais velhos não sabem tudo, às vezes andam perdidos no caminho; chega até o ponto de termos de ser nós a dar-lhes a mão para mostrar que há vida para lá das dores de crescimento ou amadurecimento.

(e quando nos sentávamos junto às palmeiras da Avenida…)

Herdámos o orgulho espinhense e crescemos a professar a raça vareira que nos faz amar e respeitar o mar como só uma terra nascida de pescadores saberia fazer. Mas tivemos de aprender a ser cidade. Aliás, continuamos a ter de aprender a ser cidade. Porque Espinho não são “eles, os que mandam”; Espinho somos nós. Como podemos dizer que não se faz nada se somos os primeiros a não fazer? E que não se passa nada se não forçamos para que se passe? Que a cidade está pouco cuidada quando não cuidamos mais do que o nosso quintal?

Chegamos aos 50 anos mais do que afirmados enquanto cidade, mas com muito por fazer enquanto comunidade. Parece-me que já percebemos que o mundo não começa nem acaba no nosso ar, nas nossas praias, nos nossos quarteirões e nas nossas ondas. É um bom princípio, ninguém se faz a olhar para o próprio umbigo. Agora, sabendo que há mundo para lá das fronteiras com São Félix da Marinha, Esmoriz, Grijó ou Nogueira da Regedoura, chega a altura de saber que cidade queremos ser e o que cada um de nós pode contribuir para isso.

(e quando o vólei de praia nos deixava em euforia…)

Um dos primeiros concertos de que (muito vagamente) me lembro é o de Xutos & Pontapés no tão saudoso Estádio Comendador Manuel de Oliveira Violas. Curiosamente, os mesmos Xutos que vêm, agora, cantar os parabéns a Espinho pelo 50.º aniversário. Talvez, à passagem para a magnífica Praça do Mar, se lembrem de perguntar o que é feito do estádio; e se admirem quando lhes disserem que esse já não existe, nem outro que lhe suceda. Talvez queiram saber, também, da mítica discoteca onde após outro concerto por cá os encontrei a comer hambúrgueres entre a madrugada e o início da manhã; e se espantem quando os informarem que essa já não existe – é uma ruína -, nem outra que lhe suceda.

Porque os espinhenses são assim: saudosistas como tudo, mas geralmente pouco dados a mexer uma palha para se mobilizarem e tentarem inverter as situações.

(e quando passavam carros por toda a Rua 19…)

Mesmo assim, se tiver oportunidade, hei-de dizer aos Xutos & Pontapés que a minha casinha não tem igual. Que ando pelas ruas de coração cheio por ter nascido e crescido aqui. Que duvido que haja outra cidade em que encontre um amigo, depois cumprimente o primo-de-um-conhecido, logo a seguir acene àquele-que-namorou-com-a-afilhada-do-senhor-do-talho e me sente na esplanada rodeado de caras que são de sempre.

Hei-de dizer-lhes, também, que por muito que a nortada sopre, que o mar esteja frio ou que os políticos nos derretam a confiança, não vou deixar de crer que o próximo meio século de vida nos fará mais atentos e mais envolvidos. Palavra de irmão mais novo.

Ricardo Fidalgo, músico