Morreram todos

Ainda só há dados relativos ao primeiro trimestre do ano, mas, até ao final de março, havia registo de 441 mortes de pessoas que faziam a travessia do Mar Mediterrâneo em direção à Europa. Aqui não entram as mais de seis centenas que, se calhar vou usar um termo mais correto, “desapareceram” quando o barco onde viajam com mais outras 100 afundou há umas semanas.

Digo “desapareceram” porque não há corpos para confirmar que tenham morrido. Não há corpos porque, obviamente, ninguém andou com grande navios, submarinos ou meras equipas de mergulho à procura de nenhuma delas.

E são 441 as que se sabem. Porque, ainda que essas informações não nos cheguem, há muito mais naufrágios no Mediterrâneo do que queremos imaginar. Experimentem seguir, nem que seja durante uma semana, uma conta no Twitter chamada Alarm Phone. É uma organização / serviço que recebe chamadas de pessoas em apuros no mar. Sim, o esquema é mesmo esse: os traficantes na Líbia dão um telefone satélite às pessoas que põem nos barcos rumo à Europa e dizem-lhes para, se a coisa correr mal, ligarem para a Alarm Phone que eles dão o alerta e alguém os irá ajudar. Verão a quantidade de vezes que a organização reporta o primeiro contacto com estes barcos, às vezes o segundo e terceiro, enquanto tentam que alguma organização – não governamental, claramente – lá consiga chegar a tempo. Podem até, muitas vezes, ouvir as gravações com os pedidos de socorro desesperados. E, demasiadas vezes, a Alarm Phone vai informar-nos do fim do contacto, do rastro perdido porque não havia barcos que pudessem fazer o resgate. “Não havia os recursos”. Porque, todos sabemos, não há mais de 6,5 milhões de dólares para andar à procura de pessoas que desaparecem no mar. A menos que sejas multimilionário. E vás em aventura ver os destroços de um barco. Ninguém diz a àquelas pessoas que o recurso em falta é a vontade.

Se não nos devíamos esforçar para salvar a outras cinco vidas? Com certeza que devíamos. No entanto, e estou agora a estudar a área da Ação Humanitária, há uma espécie de “lei” que é colocada aos atores humanitários. Sendo os recursos finitos, para não dizer muito escassos (serão?), há que fazer escolhas e, sabe toda a gente que atua neste meio, a regra é usar os poucos recursos disponíveis no cuidado do maior número de pessoas, a salvar o maior número de vidas. Depois, então, entram questões de prioridade e, com elas, os dilemas éticos, mas o ponto central não tem grande discussão: não vamos gastar recursos para salvar meia dúzia de pessoas quando esses recursos podem estar a ser canalizados para salvar centenas.

Nem tudo é preto no branco. Já todos, em algum momento, fomos confrontados com o dilema do comboio sem travões, em que temos que escolher se ele segue o caminho desgovernado e atropela um grupo de pessoas ou se agimos para que mude o curso e passe por cima de apenas uma. E não há uma resposta certa para isto. Mas qualquer pessoa que trabalhe numa organização humanitária sabe que, no final, há relatórios a preencher, há contas a prestar.

Assim, vamos lá à matemática dos recursos, numas contas muito por alto. Gastar mais de 5,9 milhões de euros no resgate de cinco pessoas atribui a cada uma daquelas vidas quase o valor de 1,2 milhões. Vejamos o exemplo da Médicos Sem Fronteiras, que, em 2022, gastou 8,9 milhões de euros nas 59 operações de busca e salvamento de migrantes no Mediterrâneo. No total, salvou a vida de 3.858 pessoas. Diz a matemática que, só com o orçamento usado numa única operação de busca pelos cinco aventureiros do Titanic, a MSF poderia ter salvado mais de 2.550 vidas.

Portanto, dizem-nos que não existem recursos para missões de busca e salvamento no Mediterrâneo? A única parcela que não entra na equação é a da vontade de salvar 500 pessoas pobres, anónimas e das quais temos medo porque ah e tal nos vão gastar subsídios e roubar empregos, mais aquela coisa ridícula da aculturização. Todos vimos aquela catrefada de barcos no Atlântico, não vimos? Será sempre uma questão de escolha. E escolheu-se salvar cinco pessoas que se puseram naquela situação porque quiseram. Pessoas que podiam, perfeitamente, e mais do que todos nós, estar a fazer mil outras coisas. Sei lá, a não dar trabalho a ninguém ou a não gastar recursos desnecessários já ajudava.

Já agora, os senhores multimilionários, pelos vistos, morreram imediatamente após a tal “implosão catastrófica”. Já as pessoas que morrem afogadas no mar, normalmente, engolem muita água num pânico incontrolável para respirar, antes que o corpo desista de lutar. O corpo infla três vezes o seu tamanho e, muitas vezes, fica a flutuar virado para baixo, em posições curvadas, os dedos e os braços em posição de quem segurava uma criança. Quando as pessoas morrem afogadas são os olhos que os peixes comem primeiro. Impressionante o que 5,9 milhões de euros podem evitar.

Fizemos tudo o que pudemos para evitar tamanho sofrimento, desde o primeiro minuto. Ah afinal eram cinco multimilionários a brincar aos multimilionários aventureiros à procura de destroços de barcos? Se tínhamos que tentar salvar os cinco? Com certeza. Mas a desproporção de recursos é…é muito triste, mundo. Esqueçamos a matemática porque, noves fora nada, a única coisa que importa é que “morreram todos” aqueles 441.

(Mas primeiro, “boa tarde”, que o senhor pivot do Telejornal que abriu o noticiário com esta informação é bem educado e quer que tenhamos uma boa tarde porque, já que estivémos dias seguidos a seguir a operação de salvamento de cinco pessoas que desapareceram no mar porque quiseram ir ver os destroços do Titanic, nós merecemos)

Cláudia Brandão

Colunista