STOP!

(se tem ouvidos pense)

No início era o sonho. Casa de quatro frentes, cheiro e som a mar, demais ruído inexistente no raio de 3 quilómetros, nem sequer aviões a sobrevoar porque há toda uma intimidade a preservar no livre usufruto do interminável pomar. E uns quantos upgrades ao gosto e critério de cada um – não há impossíveis no mundo imaginado, sinta-se à vontade.

Mas a vida teima em acontecer (quase sempre) diferente do sonho. Quando damos por nós, a casa é geminada, quase não vê o sol, o som das ondas é abafado pelo da cama dos vizinhos a bater na parede e a pelota triunfal pelo pomar fica fechada a sete chaves – há olhares indiscretos a mais e/ou pomar a menos.

E tudo bem. Adaptamos o sonho à realidade, acenamos aos do lado quando (vestidos) saímos ao pátio e aprendemos a fazer nosso aquele lugar. Criamos raízes e laços, refazemos projectos, seguimos em frente.

Mas chega o dia em que nos dizem que não, que aquela não é a nossa casa, que os vizinhos também foram postos na rua, que precisamos de preencher papéis para ir buscar o pijama ou o biberão do mais novo ou, até, o bicho que ansiosamente nos espera. É o pesadelo a atropelar a realidade com ainda mais violência do que aquela com que a realidade atropelara o sonho.

Não é nada menos do que isto que se passa nas últimas horas no Centro Comercial STOP, no Porto.

Algum músico sonha com corredores escuros, elevadores avariados, edifícios sem plano de evacuação, um calor que sufoca ou salas em que o jazz que está a tocar se funde com o black-metal do vizinho? Claro que não. Todos projectamos “o” estúdio, “a” sala de ensaios perfeita, renovação permanente de ar, isolamento topo de gama, luz natural, quem sabe um bar de canto?.

Mas a realidade foi o STOP, que estava ali, semi-abandonado, à espera de ganhar uma vida nunca imaginada, cheia de gente talentosa, de entra e sai de e para concertos, de espectáculos trabalhados até à exaustão, de discos gravados e editados, de artistas famosos e aspirantes a músicos. E de sonhos; toneladas de sonhos a ocupar cada uma daquelas salas que não eram de sonho.

Dizem “eles” que os vizinhos se queixam do barulho e que não há condições de segurança e que vão garantir alternativas. Não dizem de especulação imobiliária e de pressões com mais peso (sempre mais peso) do que a produção cultural. Não dizem que as alternativas são substituir a casa artística de cada um daqueles músicos por uma espécie de motel onde, com sorte e correndo bem, podem ir um par de horas por semana. É como tirar a cozinha ao chef e compensá-lo com uma manhã na cantina da escola; ou o gabinete ao Presidente e dizer-lhe que pode assinar as ordens de despejo no café da esquina.

Este não é um problema só do Porto. Primeiro, porque no STOP há músicos de todo o lado. Depois, porque a falta de equipamentos públicos ou privados onde se permita e encoraje a criação musical é um problema transversal ao resto do país. Quem dá o primeiro passo? Quem se coloca na linha da frente?

Não, não é barulho. Imagine a vida sem música. Nem no elevador, nem nos auditórios, nem no supermercado, nem no arraial, nem nos clubes ou nos bares. Imagine que não existia aquele festival que tanto o incomodou à porta de casa; mas também não existia a banda de baile que estacionou no mesmo sítio uma semana depois e o fez deslizar pela pista de dança improvisada. Imagine crescer sem ídolos musicais, sem banda sonora daquele Verão ou do romance mais tórrido. Agora, pare e pense: o que seria de si (de nós) sem melodias que embalem o correr dos dias?

Tive a oportunidade de aprender desde cedo, mas se calhar sem o perceber logo, que conceber arte é bem mais do que trabalho. É o estado de espírito, é o momento, é o local, é o entusiasmo, é a companhia ou a solidão. Paro para reflectir e sei quem me passou muita desta percepção: o Elio Oliveira, talvez o amigo dos meus pais que eu mais tenha sentido que era meu verdadeiro amigo também. Agora sei porquê.

Artista plástico absolutamente sublime, com uma sensibilidade extrema, o Elio foi preenchendo as paredes das nossas casas (e de tantas outras) com obras maravilhosas. Não percebo absolutamente nada de pintura e a única nota negativa da minha vida aconteceu a (tentar) desenhar, mas tantas vezes dei por mim a descobrir mais um pormenor naqueles quadros e a pensar no processo, na criação, na arte. A crescer como artista, tal era a inspiração que dali vinha.

Nos últimos anos, por proximidade pessoal com profissionais do meio, o Elio promoveu música, organizou espectáculos e continuou a fazer pela cultura. Há alguns meses, ao ler-me aqui na Defesa de Espinho, encorajou-me a escrever letras para canções e quis apresentar-me a compositores que as musicassem.

O Elio não sabe, mas já escrevi letras entretanto. Gostava tanto de lhas mostrar.

O Elio também não sabe que estão a escorraçar músicos do STOP. Artistas que, aspirando a ser como ele, tentam criar para inspirar e colorir e estimular, fazer pensar, ver para lá do óbvio.

O Elio partiu, mas gente assim, com tanto amor espalhado por tantas paredes, nunca parte.

Ricardo Fidalgo

Músico