Histórias e “estórias” deste cinquentenário da revolução

1 – OS RURAIS DE ESPINHO

Muito coisa aconteceu, ao longo de toda a semana do cinquentenário do 25 de abril de 1974. Nos “dias antes”, correram as “estórias”, e o contista-mor foi o Senhor Presidente da República, com declarações insólitas, a mostrar a força das palavras e o perigo de as usar mal. Nada foi mais comentado no espaço público ou privado, do que o indiscreto convívio do PR com jornalistas da imprensa estrangeira, onde se permitiu traçar, nada mais, nada menos, do que o retrato psicomotor dos últimos Primeiros-Ministros, o anterior e o atual, ambos caracterizados como “lentos”… Conhecida a invulgar agilidade mental de um e do outro, e, pelo menos no caso de Luís Montenegro, também a física, (tratando-se de um praticante de várias modalidades desportivas), a adjetivação deixou o país boquiaberto de espanto, sobretudo pelo facto de conotar a lentidão de Costa com a sua ancestralidade oriental, e a de Montenegro com origens rurais!

O estereótipo racializado do “oriental” é de tal forma desajustado e absurdo, que nem merece comentário, apenas um lamento… Já a atribuída ruralidade espinhense do nosso conterrâneo pode bem ser objeto de interpretação política, muito política, sobretudo, dentro do PSD.

O PPD, partido interclassista, nasceu no centro esquerda, com as suas alas esquerda e direita, e as suas assimetrias regionais, entre as quais avultava uma: a linha de separação do cosmopolitismo lisboeta e do provincianismo do resto do País, considerado, do litoral ao interior, “país profundo” (e, por isso, Espinho, cidade marítima e turística, a dois passos do Porto, se situa, nas profundezas do mapa marcelista). “Rural” é, pois, um simpático sinónimo de “provinciano”. Nós, os nortenhos, somos todos vistos assim pelos lisboetas. Mais precisamente, pelos “snobes” da linha Lisboa-Cascais. Não levamos a mal. Esta[1]mos, historicamente, bem acompanhados – pelo próprio Dr. Sá Carneiro, por Eurico de Melo e os demais militantes do PPD/ PSD, fora daquele seleto círculo geográfico. Veja-se como o Prof. Marcelo fez questão de lembrar o berço rústico do partido laranja… No entanto, o termo não era de uso corrente dentro do partido até aos tempos da sucessão de Francisco Sá Carneiro, em 1981. As clivagens, desde o início existentes, acentuaram-se, então, entre os fiéis do novo Primeiro-Ministro Francisco Balsemão (oriundo da mais pura linhagem Lisboa/Cascais) e os “críticos” (que haviam sido mais próximos de Sá Carneiro, caso do Eng.º Eurico de Melo e do Prof. Cavaco Silva). O outro nome dos “críticos” passou a ser, precisamente, o de “rurais do Norte”, pouco importando que Cavaco, Cabrita Neto, e muitos mais, fossem sulistas. Eu própria, com imenso orgulho, me afirmei, nesse sentido, vezes sem conta, “rural do Norte”. Luís Montenegro, na altura, ainda não tinha idade para fazer parte dessa ala, mas é bem-vindo agora!

Felizmente, o PR Marcelo disse mais. Disse, por exemplo, que o novo Primeiro-Ministro o “surpreende” com os seus “improvisos” – ou seja, com decisões e escolhas, sobre as quais consegue manter absoluto secretismo até à hora exata.

Uma maçada para o Presidente, que vê reduzida a margem de interferência na governação e já não pode dar notícias no lugar do porta-voz do Executivo. Daí a sua irritação… A análise lúdico-política de Ricardo Araújo Pereira vai neste sentido, e eu assino por baixo. A rir, se dizem verdades…

2 – A REPARAÇÃO DE DANOS…

Outra inconfidência do PR, que causou ainda maior brado, numa linha definitivamente “woke”, foi sobre a reparação dos danos do colonialismo… A meu ver, com a sua tirada mediática, nas vésperas do dia 25, vai o Prof. Marcelo fazer mais “estória” do que “História”, por ter errado no “quando”, e por não explicitar o “como” da dita reparação. Ora o “como” é o que mais interessa! Para mim, “reparar” é cooperar, em diálogo, em vivência, continuando interações em curso, no clima de entendimento que tem imperado, nas últimas décadas. Ao contrário dos extremistas de direita e de outros nacionalistas de variada extração, sou uma crente no “ecumenismo lusófono”, num projeto coletivo de reencontro de povos que pode chamar-se CPLP, ou outra coisa qualquer. Não esqueçamos o passa[1]do, mas olhemos, sobretudo o futuro, os jovens! Todas as formas de cooperação existentes, o acolhimento de estudantes, a abertura à imigração, a criação de estatutos de cidadania (do qual o velho e renovado “Tratado de Igualdade de Direitos e Deveres entre Portugueses e Brasileiros” é já um inigualável paradigma), a restituição da nacionalidade (à semelhança da concedido a descendentes de judeus portugueses) são dados positivos no balanço do cinquentenário da Revolução de 1974. Há que prosseguir no domínio da cooperação económica, cultural e científica, (partilha de arquivos, de obras de arte, de saberes) ou qualquer outra. Estamos no bom caminho, há que avançar.

“Felizmente, o Presidente
Marcelo disse mais. Disse,
por exemplo, que o novo
Primeiro-Ministro o
“surpreende” com os seus
“improvisos” – ou seja,
com decisões e escolhas,
sobre as quais consegue
manter absoluto
secretismo até à hora
exata”

3 – UM DIA PARA A HISTÓRIA: O 25 DE ABRIL

Nestas comemorações do 25 de Abril, foi imenso o contraste entre as esplendorosas manifestações populares, e os monótonos rituais de iniciativa estatal, os do Parlamento, assim como a discreta sessão dos ilustres convidados do PR no CCB – os Chefes de Estados lusófonos, herdeiros da mesma revolução que trouxe a Portugal a liberdade e a democracia. Foi uma espécie de réplica da comemoração parlamentar, com um rateio de tempos – uns escassos 10 minutos – para cada um dos oradores, tendo o anfitrião feito a mais pequena e pobre intervenção da sua vida. Que grande oportunidade perdida de marcar a data, com algo de grandioso, festivo, portador de ideias e propostas de colaboração mútua, tendo no centro a própria CPLP!

Era o momento de fazer o balanço da sua ação, de mostrar as suas potencialidades, de apelar à participação dos migrantes de toda a lusofonia, que bem merecem um estatuto jurídico e real praticado de fraternidade. O evento merecia outro eco nos “media”, outro reconhecimento público e popular. Que pena, tão significativa presença do mundo lusófono, representado a nível presidencial, nas comemorações ter sido quase ignorada! Que pena não termos visto mais imigração a descer connosco a Avenida da Liberdade.

Em compensação, que fantástico foi ver nessa gigantesca manifestação popular, espontânea, exuberante, um sinal da interiorização coletiva dos valores democráticos! De todos, e de tantos jovens, tantas mulheres.

Mulheres, sobretudo mulheres, que tinham razões de sobra para isso: a revolução libertou todo um povo, mas libertou muito mais os que tinham menos direitos. E elas, antes de Abril, na chamada” família tradicional”, sofriam de uma “capitis diminutio”, com um estatuto de eterna menoridade (numa expressão mais forte, de verdadeira escravatura). A mulher devia obediência ao marido, como os filhos ao pai – não á mãe, porque era ele que detinha o poder parental, o poder de administrar os bens do casal, incluindo os bens próprios da mulher, o poder de decidir tudo, o domicílio conjugal, onde viver e como viver… De algum modo, a mulher casada, sendo súbdita do homem, era sua “colónia”. No 25 de Abril, também se deu a “descolonização” da mulher… E essa foi a nossa única descolonização exemplar.

Com que orgulho, nós, as mais velhas, olhamos o Portugal onde as raparigas são 60% dos licenciados do País, onde as jovens acedem, com mais ou menos dificuldade, e brilham, em profissões que, até 1974, lhes eram vedadas. E, embora mais vagarosamente, vão ascendendo na política a todos os níveis, na vida partidária, reduto onde os partidos do poder ainda têm rosto masculino. Como as gaivotas metafóricas do líder do IL, no seu discurso em São Bento, as mulheres não querem voltar para trás… 25 de Abril sempre!

Manuela Aguiar
Ex-secretária de Estado das Comunidades e Ex-vereadora da C.M. Espinho