A inércia faz-nos mal

– Cheira-me que hoje a noite vai ser calma.

– Ainda bem!

A conversa chega-me na diagonal e penso se terei ouvido bem, mas a continuação do diálogo não só confirma como aprofunda a ideia. Noite calma, pouca afluência, jornada de trabalho mais relaxada e uma série de previsões para as semanas seguintes, quase todas no mesmo registo.

Se estivéssemos a falar de urgências hospitalares (das que ainda há), óptimo sinal, que esta gripe anda realmente pesada e isso traduz-se em unidades sobrelotadas, macas aos montes nos corredores e profissionais sem mãos a medir. Mas não, não era um hospital.

Pelo que vou observando, a noite naquele restaurante flui, de facto, sem grande movimento – não está vazio, mas também não chega a estar cheio e não há grande rotatividade de mesas. Os primeiros clientes chegam tarde, os seguintes vêm aos pares, nada daqueles grupos grandes que compõem rapidamente a lotação. Ainda que não os veja do sítio em que estou, é impossível não passar o tempo a imaginar como vão reagindo os dois funcionários que já estavam cansados quando ainda não tinham começado sequer a trabalhar.

– Não me digas que vão entrar.

– Boa, aqueles viram o menu e não ficaram.

– Tinha de pedir a sobremesa mais elaborada?

– Só me faltava este, a sentar-se agora…

– Apaga a luz, para pensarem que estamos fechados.

– Era um arrozinho de pato para todos e ficavam arrumados!

Temo que esta inércia quase
crónica esteja enraizada
para lá dos recibos de
vencimento. Grande parte de
nós, simplesmente, não quer
saber, principalmente se se
convencer que está a dar a
cara por terceiros e não por
si próprio – erro crasso, se há
coisa de que não devemos
abdicar para ninguém é o brio
e a consciência de sermos a
melhor versão possível de nós
próprios

Não sei se pensaram ou se disseram, é a minha criatividade a desassossegar o cenário, mas a postura aponta neste sentido. Se fosse caso único, não me preocupava, mas a gritante falta de brio tem alastrado mais rápido do que os vírus da época.

Gente assim não pensa mais longe do que um par de horas. Não quer saber se a falta de movimento, repetindo-se numa noite e noutra e noutra, há-de obrigar a despedir pessoas; porque aí talvez já tenham passado os meses de labuta que dão direito a subsídio de desemprego e o ciclo recomeça. Vê-se não só nos restaurantes (onde é tão fácil o cliente perceber que a sua chegada incomodou o funcionário), mas em muitos outros sítios. O que dizer dos estafetas que deixam avisos (provavelmente escritos antes do início do frete) de falta de entrega por ausência do destinatário e a campainha nunca chegou a tocar? Ou do clássico “só há o que está exposto”, porque dá muito trabalho ir ver se o tamanho necessário está em stock? Ou, até, dos que despacham o atendimento para um colega mais solícito e/ou menos descarado?

Sem falsos moralismos, todos os que são ou alguma vez foram empregados por conta de outrem têm dias mais produtivos e outros menos. Semanas em que estão motivados, outras em que nem por isso. Meses em que é impossível aturar o chefe. Mas isso não pode e não deve significar regozijo por ausência de clientes ou falta de vontade para prestar um serviço (ao menos) digno.

Os ordenados, em média, são vergonhosamente baixos e isso explica parte desta atitude: se as pessoas não se sentem valorizadas, tendem a não valorizar também, a deixar andar; se o que ganham num mês já não chega sequer para as despesas básicas, começa a faltar combustível para encarar o trabalho, para sentir que estar ali, a fazer aquilo, vale a pena.

No entanto, temo que esta inércia quase crónica esteja enraizada para lá dos recibos de vencimento. Grande parte de nós, simplesmente, não quer saber, principalmente se se convencer que está a dar a cara por terceiros e não por si próprio – erro crasso, se há coisa de que não devemos abdicar para ninguém é o brio e a consciência de sermos a melhor versão possível de nós próprios.

Quem lidera o país tem o dever de promover melhores condições de vida para o povo; quem lidera as empresas tem de perceber como motivar os colaboradores, como contornar esta perigosa letargia. Isto partindo do pressuposto que as chefias, públicas ou privadas, não estão acometidas de igual falta de brio. O que, nomeadamente no caso daquelas, me deixa sérias dúvidas.

Gostava que 2024 nos fizesse mais interessados, mais empenhados nas nossas causas, maiores ou menores. A começar pelos importantíssimos actos eleitorais que temos no calendário e que merecem mais atenção do que a apatia generalizada que se vem instalando. Em ano de celebração do meio século do 25 de Abril, podíamos bem tornar-nos briosos cidadãos. Com isso, quem sabe?, talvez abramos caminho para estarmos, no geral, a construir a paz com a nossa consciência.

P.S.: Foi na minha passagem pel’O JOGO que recebi algumas das mais importantes lições de brio. Numa área em que as paixões são exacerbadas, e já então com algumas limitações de recursos, aquela redacção trabalhava com uma dedicação e um profissionalismo que, acabado de sair da universidade, me fizeram entrar no mercado de trabalho pela porta certa. Sei que é assim que se continua a fazer jornalismo por ali, bem como nos outros órgãos de um grupo que ameaça implodir a qualquer altura. Aquela gente, que nunca se satisfez por ter menos trabalho – pelo contrário -, merece que tudo seja feito para contrariar o que lhe vaticinam. E nós, sociedade, devíamos também fazer por merecer esse tipo de jornalismo sério que começa a entrar em vias de extinção.

Ricardo Fidalgo

Músico