O Adamastor

O mar em fúria abria-se tenebroso a engolir a proa do navio gigante. Perante a grandiosidade tão bela quanto horrível, os meus olhos de criança aguardaram, sem fôlego, os momentos seguintes. O barco inclinado em descida quase vertical, rumo às profundezas do mar prestes a ser devorado, voltou a subir como que por milagre. A água em fúria bateu ferozmente nas vidraças…

Se tive medo? A mão firme do meu pai era o suficiente para evitar que o medo se apoderasse de mim. Está tudo bem – acabou ele por dizer, quase sem voz, é o Adamastor! Como ele gostava de viver situações limite e fazer passar a mensagem de que era bom apreciar a natureza nos seus limites! Mas certamente não imaginaria o quão terrível seria aquele espetáculo, visto da primeira fila, agarrados ao varão da sala de jantar totalmente envidraçada! Olhei para trás: a sala vazia parecia ainda maior, sem as cadeiras a rodear as mesas redondas, vestidas apenas com saiotes lustrosos. Tudo tinha sido retirado. Tínhamos ido à sala buscar alimentos, apenas um jarro térmico cheio de leite.  Afastámo-nos do salão para seguir pelo corredor vazio, cambaleando até ao camarote. Entrámos e ele sentenciou: o momento é difícil. Não poderemos mais sair deste lugar até tudo passar. Será melhor deitarem-se e agarrarem-se às grades das camas. As malas de camarote foram melhor amarradas, porque a previsão dada pelo comandante era a que a situação se ia agravar pela noite adentro.

É o Adamastor! Voltou a dizer meu pai.

Deitada e coberta, com lençóis e mantas quase a embrulhar e a espalmar o meu corpo, aconchegado por minha mãe, interroguei-me quem seria o tal misterioso Adamastor. Porque era ele o responsável pelo temporal? Fiquei curiosa, mas o momento era muito crítico para questionar. Meus pais ficaram a acompanhar cada uma das filhas, protegendo-nos para que nos mantivéssemos deitadas para não sermos projetadas. As malas ainda gingavam pelo balancear constante e intenso. A dado momento, o lindo jarro térmico de cor azul chinês voou pelo camarote. Ficou completamente partido por dentro a envolver o último alimento para o jantar. Sem nada para comermos, adormeci a ouvir os meus pais segredarem a sua imensa preocupação: o que seria de nós? Depois de tantos simulacros a realidade seria seguramente muito diferente. Cada um teria de tomar conta de uma criança… Ouvi a minhamãe rezar baixinho enquanto o meu pai continuava a afagar-me. Tudo vai passar, dizia ele baixinho.

Na manhã seguinte, acordei com o balançar quase sereno do barco. Os meus pais estavam arrasados, sem pregar olho toda a noite, e o camarote estava num caos. O meu pai com um grande sorriso disse: tudo passou! Estamos salvos!

O Cabo da Boa Esperança,
situado na ponta sul de África
do Sul, na junção dos dois
oceanos – Atlântico e Índico,
significava a esperança de
abrir novos caminhos às
descobertas portuguesas, mas
era também conhecido como
o Cabo das Tormentas!

Soubemos depois que a noite tinha sido um verdadeiro pesadelo. Muitos dos passageiros dirigiram-se para junto das baleeiras a aguardar ordem de partida. O comandante confessou ter sido a mais complicada e assustadora situação vivida no Cabo da Boa Esperança, de tantas viagens já realizadas. Esteve a uma décima de segundos para tomar a decisão de ordenar largada de navio. Ainda bem que não o fez. São as grandes decisões que marcam destinos. Tenho a certeza de que os meus pais não seriam capazes de nos arrastar até ao cimo do navio, apinhado de passageiros que já lá estavam para serem os primeiros a partir. O colérico Adamastor ter-nos-ia engolido – disse o meu pai!

Só mais tarde, soube quem era o terrível gigante Adamastor, figura mitológica no célebre canto V in Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, que atormentava e devorava as frágeis caravelas na altura dos Descobrimentos. O Cabo da Boa Esperança, situado na ponta sul de África do Sul, na junção dos dois oceanos – Atlântico e Índico, significava a esperança de abrir novos caminhos às descobertas portuguesas, mas era também conhecido como o Cabo das Tormentas!

Quando era menina, fiz várias viagens atravessando o Cabo das Tormentas, mas esta foi a mais difícil. Sempre que iniciávamos uma viagem, durante o simulacro, eu chorava de medo pensando ser uma situação real. À medida que o som das sirenes soava, os meus pais colocavam-me o colete de salvação e corríamos velozes, à medida que as portas de ferro se iam fechando. Era apenas um simulacro, mas mal eu sabia que ele esteve prestes a tornar-se real.

Quando surgiu o filme Titanic, resisti muito tempo e, quando finalmente o vi, presenciei o drama que afinal, felizmente, não cheguei a viver. Só sei que chorei torrencialmente!

Arcelina Santiago

Professora