Comecei, noutro dia, erradamente, uma conversa com uma amiga sobre política. Não era para ser nada muito aprofundado, estava apenas a comentar que tinha estado a ouvir o discurso do secretário-geral do PS. Posso ter-me referido ao senhor como “futuro primeiro-ministro deste país”, não confirmo nem desminto, afinal, do mal o menos, mas o problema foi, no seguimento da conversa que, inocentemente comecei, ter ouvido o típico “mas o Ventura até diz umas verdades”, acoplado das habituais referências aos ciganos e aos corruptos.
Depois de controlar a vontade de sair do carro em andamento (há coisas que doem mais), disse apenas um “não, não diz. Ele diz o que as pessoas gostam de ouvir porque simplifica o pensamento”.
Tenho 37 anos, sempre vivi em democracia e, portanto, na liberdade que ela me concede, mas calha que também estudei História. Sei como chegaram ao poder muitos dos piores ditadores, mas também muitos daqueles que, com um incrível (ou será apenas básico?) poder de retórica, convenceram milhares de que iriam “salvar” o país, apontaram o dedo aos elos mais fracos como razões para muitos dos problemas e exacerbaram o “amor à pátria” contra os “de fora” que nos vêm aculturar e roubar subsídios. Alguém sabe de algum país onde estes discursos se tenham traduzido em melhores condições de vida para quem lá vive? Já todos vimos esses filmes, aqui ninguém está a inventar a roda.
Na semana passada, para nem ir mais atrás que não tenho caracteres para tanta barbaridade que tem vindo ao de cima ao longo dos demasiados anos que estes gajos existem, ouvi coisas como acabar com o imposto sobre imóveis ou o imposto de circulação e acho que a lista ainda tinha lá mais umas quantas fontes de receita do Estado para dar cabo. À pergunta “então, mas onde é que vai buscar o dinheiro para (inserir promessa fantasiosa número 374)?”, o querido líder diz…que há outras formas e envereda rapidamente por outro tema. Ou seja, não faz ponta de ideia.
Também, convenhamos, eles não precisam de ter propostas, basta dizerem que está tudo mal e que vão acabar com os subsídios e combater os corruptos de alguma forma. Não precisam, porque sabem que não vão ser Governo. O próprio Ventura disse que se estivesse no cargo e não conseguisse igualar as reformas ao salário mínimo, se demitia. Este jogo de atirar coisas para o ar, a ver se ganho mais dois ou três votos, deve ser divertido. Ora, programa mais oco é difícil. Até porque, dizem as contas, a Segurança Social duraria quatro anos se tivesse de pagar essa fantasia. E aí, nem as contribuições dos imigrantes – que ele faz uma grande ginástica para ignorar – lhe valeriam.
Por outro lado, ia buscar os 426 milhões de euros que dizem que o Orçamento de Estado ia gastar na “ideologia de género” (era “igualdade”, e grande parte investimento no equilíbrio da balança entre homens e mulheres no mercado de trabalho, incluindo coisas “descartáveis” como o reforço do abono de família, o alargamento da gratuitidade das creches ou os passes para os jovens, mas, lá está, esta gente deturpa a realidade como acha que vai penetrar nos ouvidos de quem não se dá ao trabalho de se informar melhor) e direcioná-los para as forças de segurança, os ex-combatentes e os agentes da justiça.
“Convenhamos, eles não
precisam de ter propostas,
basta dizerem que está tudo
mal e que vão acabar com
os subsídios e combater os
corruptos de alguma forma.
Não precisam, porque sabem
que não vão ser Governo”
A sério que quase 400 mil pessoas acham que criar casas de banho para jovens ‘trans’ nas escolas e aceitar nomes neutros é promover qualquer espécie de ideologia ou andar a tentar converter pessoas seja lá no que for? Respeitar os outros como são, não lhes diz nada? Era uma pergunta retórica, deixem lá.
Não deixa de ser curioso que não estejamos a falar apenas daquela malta do “no meu tempo é que era”, “isto era um Salazar em cada esquina” ou do “eles vêm roubar-nos os empregos”. Há, também, aqueles mocinhos que, com 16 anos, já foram do PSD, depois da Iniciativa Liberal e agora dizem que são do Chega. É conforme lhes dita o privilégio de um ensino privado, dos botões de punho, dos Uber Premium para que não sejam conduzidos por um indiano ou paquistanês, que horror.
Todas estas personagens podiam ser só mesmo isso, só uma piada nacional, que nos fazia rir a cada semana, mais um pouco pelo ridículo a cada eleição, mas o fascismo não tem graça nenhuma. É uma mentira atrás da outra que levou, nas últimas legislativas, 399.510 pessoas a fazerem do partido fascista o terceiro na Assembleia, e a coisa agora aponta para serem ainda mais. Iludidos ou ignorantes, não podem passar. Chega. Mas chega é de andarmos a brincar com a democracia. Chega de atirar areia para os olhos, de construir castelos de descontentes, daqueles que facilmente caem com vento, depois de serem erigidos sob as conquistas sociais de tantos.
Se eu consegui convencer a minha amiga a não votar nos fascistas? Temo que não. E temo que o tempo se nos esteja a esgotar. Faltam 45 dias. (Se eu estive a ver o congresso? Sim, mas não se alarmem. Saí incólume! Ainda a recuperar do minuto de silêncio pelas vítimas da corrupção, mas…)
Entretanto, não sei se já conhecem, mas há um novo partido, o Nova Direita, cuja líder garantiu ter “vontade e vida para tomar conta desses dois meninos”, referindo-se a Ventura e Montenegro. Entre as “brilhantes” ideias estão a revogação da lei da eutanásia, a luta “contra a ideologia woke” nas escolas ou o fim das isenções para cirurgias de mudança de sexo ou interrupção da gravidez.
Não bastava um facho…?
Cláudia Brandão
Jornalista