Todos os anos em março é tempo para avivar memórias sobre um tema a merecer maior atenção ao longo do ano: a situação das mulheres na sociedade e a desigualdade ainda existente. Portugal tem-se destacado nos últimos anos por políticas que dão expressão à afirmação no feminino se bem que o nosso país, curiosamente, é muito mais célere e inovador na criação de leis do que na sua aplicação. O facto de termos algumas vitórias nesta caminhada árdua pela igualdade, verificamos que a luta tem de ser constante porque nada é completamente adquirido e seguro. Por exemplo, em 2023, as desigualdades salariais entre homens e mulheres acentuaram-se, o que significa um retrocesso. Claro que tem havido muitas mudanças positivas embora haja já a espreitar, alguns seguidores saudosistas com vontade de voltar ao antigamente, nomeadamente quanto ao domínio das mulheres pelos homens. Parece algo impensável num país civilizado, mas não é.
Ao comemorarmos este ano dos 50 anos do 25 de Abril é tempo de lembrar, principalmente os mais novos que antes, a mulher era tratada como um ser inferior ao homem. A sua missão era destinada à esfera privada enquanto os homens, senhores do mundo público, mudavam o mundo. Poderemos dizer que é impensável, quase ficção, principalmente para os jovens que nasceram depois do 25 de abril, compreender que os direitos das mulheres eram muito limitados. Por exemplo, só era possível sair do país com autorização do marido. A cartilha ditada por Salazar passada de mães para filhas, afirmava o plano secundário das mulheres com um papel definido pelo dominador, obedecer sempre e deixar-se violentar sempre. Desde muito jovem a mulher era formatada para ser assim, submissa ao poder patriarcal do pai, do irmão e, mais tarde, do marido. O único futuro que podia ambicionar era o de fazer um bom casamento que garantisse o sustento da família, que, custasse o que custasse, tinha de se manter unida, estável e forte. Não tinha o direito de votar nem aspirar a muitas das profissões: juíza, diplomata, militar ou polícia e muitas mais. Para trabalhar no comércio, sair do país, abrir conta bancária ou tomar contracetivos, a mulher era obrigada a pedir autorização ao marido. Ganhava quase metade do salário pago aos homens e algumas delas tiveram de recorrer a pseudónimos para ocultar a sua autoria e muitas delas tiveram o seu sucesso atribuído, indevidamente, aos homens. Estas e outras leis foram rasgadas no 25 de Abril, quando, um ano depois da revolução, os direitos das mulheres ficaram consagrados na Constituição da República.
“Ao comemorarmos este
ano dos 50 anos do 25 de
Abril é tempo de lembrar,
principalmente os mais
novos que antes, a mulher
era tratada como um ser
inferior ao homem.”
Sim, durante séculos, os homens alegavam que as mulheres eram amplamente consideradas físicas e mentalmente inferiores aos homens. Daí não serem adequadas para o ensino superior ou para o trabalho porque eram muito instáveis durante uma semana inteira a cada mês. Os médicos, ainda, identificavam uma condição física, mais tarde, uma doença mental para mulheres “excessivamente emocionais” – histeria, cuja origem vem da palavra grega útero. O diagnóstico era sério e, muitas vezes, levava a tratamentos duvidosos e, na pior das hipóteses, ao internamento.
Atualmente, as mulheres superam os homens na conquista de diplomas, pós-graduações e representam a metade da força de trabalho. Estão praticamente em todas as áreas do conhecimento. No entanto, elas ainda têm remunerações inferiores à dos homens e ocupam menos lugares de liderança e em cargos públicos, enfrentando ainda preconceitos.
Nunca é demais lembrar e celebrar o papel das mulheres na sociedade no passado e na atualidade.
Se, como antes referi, em plena ditadura muitas mulheres com a sua coragem imensa e sofrimento, enfrentaram as leis severas para que mudanças acontecessem, muitas delas permaneceram sempre invisíveis, na sombra, e só muito mais tarde a sua ação em prol da defesa dos direitos das mulheres foi devidamente reconhecida; outras continuam no anonimato. Pergunto eu: como foi possível? Elas abriram caminhos para novos sonhos e novas profissões: lugares de chefia, em centros de investigação, na magistratura, nas forças militares, na medicina, na ciência e na tecnologia…
É preciso mesmo comemorar as mulheres que continuam a fazer a diferença na sociedade atual. Elas são inspiradoras e merecem relevo. “Mulheres incomuns” é o título de um livro que nos revela algumas dessas mulheres, em diversas áreas, uma homenagem a doze mulheres com projetos de vida e trajetos profissionais que se destacam na sociedade, relatadas por doze mulheres. A Comunidade Mulheres incomuns (CMI) integra-se no projeto que se rege por uma lógica de trabalho voluntário e de cidadania ativa. O grande objetivo é ser inspirador para que outras mulheres se inspirem e que percam o receio de dar a conhecer os seus feitos.
A nossa história coletiva ganha com estas narrativas onde as protagonistas são orgulhosamente mulheres que, apesar da sua genialidade, continuam a enfrentar obstáculos.
Arcelina Santiago
Professora