Onde está o Qaly?

Em medicina é habitualmente utilizada uma medida de estado de saúde que considera tanto a longevidade como a qualidade dessa vida. Dá-se o nome de QALY (do inglês Quality Adjusted Life Years). Um ano de boa saúde representa 1 QALY. Estar morto representa 0 QALY. Depois há todos os níveis intermédios dependendo do nível de saúde de cada um. Um ano em estado vegetativo representa menos QALY do que alguém um ano com fortes dores na coluna ou com problemas de depressão. Estas medidas são usadas para tomar decisões sobre tratamentos e, em casos extremos, decidir que doentes são tratados ou recebem transplantes. Havendo apenas um órgão para transplante e dois possíveis receptores, um de 20 e outro de 60 anos, à partida será o de 20 a recebê-lo por ter mais anos de vida pela frente. No entanto, se o de 20 tiver uma doença grave que afecte de forma severa a sua qualidade de vida ou longevidade, pode acontecer a pessoa de 60 anos ter uma expectativa de QALY maior. Da mesma forma, alguns médicos recomendam aos seus doentes não enveredarem por certos tratamentos que lhes prolongam a vida por poderem diminuir mais do que proporcionalmente a qualidade de vida. Isto acontece, por exemplo, com tratamentos ao cancro em pessoas mais velhas e com menos esperança de vida. Uma pessoa com 95 anos poderá apreciar mais um ano de vida de boa saúde do que três anos de tratamentos dolorosos.
Portanto, a medicina já aceitou há muito tempo que o seu objectivo não é, tecnicamente, salvar vidas, mas sim estendê-las porque nenhuma vida é salva indefinidamente. Também já se aceita há muito tempo que a vida não é só longevidade, mas que também há um aspecto de qualidade de vida que é preciso ter em conta. Se o único objectivo da vida fosse a longevidade, o ideal era nascermos e sermos colocados numas cápsulas a ser alimentados por uma sonda durante 140 anos até finalmente o corpo ceder. Provavelmente ninguém invejaria esta vida. Os seres humanos, pelo contrário, gostam de tomar opções que colocam em risco a sua longevidade a troco de uma maior qualidade de vida. Muitas vezes até o fazem a troco de aumentos de qualidade de vida que são discutíveis, como quando fumam, tomam drogas, comem em excesso ou praticam outros comportamentos que diminuem a longevidade. Algumas pessoas apreciam tanto o risco que não se importam de arriscar severamente a sua esperança média de vida para terem acesso a emoções fortes que lhes aumentam a qualidade de vida (como quem faz parapente, alpinismo ou andar a pé ao longo da nacional 109 em Paramos). Desfrutar a vida implica estas duas coisas: longevidade e qualidade. Enquanto a longevidade é fácil de medir, a qualidade depende muitos dos gostos de cada um. A medicina, e também a filosofia e a economia, já o aceitou há muito tempo.
Na gestão de uma pandemia é inevitável pensar em salvar vidas, perdão, em alongar vidas. Pelo caminho, impõem-se várias restrições que inevitavelmente reduzem a qualidade de vida das pessoas. Este é um equilíbrio muito complicado por vários motivos. O primeiro é porque a morte é um evento imensamente mais dramático do que qualquer perda individual de qualidade de vida. Ao lado de uma morte, ter uma turma inteira sem aulas durante dois meses não parece muito grave. Ao lado de uma morte, ter centenas de pessoas fechadas em casa também não parece muito grave. Por outro lado, os custos em termos de longevidade estão muito concentrados numa faixa etária (os mais velhos), mas os custos de qualidade de vida estão concentrados noutra faixa etária (mais novos e meia idade). Não fossem as elevadas fatalidades entre os mais velhos, provavelmente o vírus nem sequer seria visto como um problema sério.

Carlos Guimarães Pinto
Economista / Professor universitário

Artigo publicado, na íntegra, na edição de 18 de fevereiro de 2021. Assine o jornal que lhe mostra que lhe mostra Espinho por dentro, a partir de 28,5€.