As autarquias, repúblicas dos homens

“Hesitei bastante no título deste comentário. Há tantas maneiras de dizer o mesmo. Célia Marques fala de “mundo masculino”, Sandra Ribeiro (uma voz ‘oficial’, presidente da ‘Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género” (CCIG) de “meios masculinizados’, Luís de Sousa (ICS da Universidade de Lisboa) de ‘envolvente masculina’, António Barreto de ‘invisibilidade – feminina – no país das autarquias’. Alguns exemplos, entre outros, que guardo na memória. Finalmente, decidi ‘plagiar-me’ a mim própria, lembrando um colóquio organizado em Espinho, em 2010, durante as comemorações do centenário do 5 de Outubro de 1910: Mulheres na República dos Homens.”

1 – A realidade, que os números e estatísticas revelam, é que as autarquias são, em Portugal, o último reduto do (quase) absoluto poder masculino. A Lei da Paridade veio criar nos lugares secundários a ilusão de um crescente equilíbrio de género, mas deixou intocado o cargo onde reside todo o poder – a presidência das Câmaras, em sistema presidencialista. Os homens estão à frente de mais de 90% dos concelhos do continente e das regiões autónomas.

A paridade que, na economia do diploma original, de 2006, era atingida com uns modestos 33%, subiu em reforma recente para 40%. Subiram, com ela, as expectativas de um progresso que nos deixaria perto da barreira das quarenta presidências femininas. Desde 1985, vínhamos registando um crescimento pequeno, mas consistente. Na meia década de 80, contávamos apenas quatro mulheres presidentes. Em 2017 já eram 32. Pouco ultrapassando os 10%, não se tratava de um resultado excelente, mas alimentava a convicção de progresso irreversível. Por isso, 2021 foi verdadeiramente dececionante, porque, pela primeira vez, em décadas, esse número desceu (de 32 para 29), continuando a deixar de fora as principais cidades do País – Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, e por aí adiante…

2 – Há em Portugal, a meu ver, uma crença excessiva nas virtualidades do Direito para resolver os problemas do nosso atraso social e económico, de desequilíbrios e assimetrias herdados do passado. No que em especial se refere à discriminações de género, não penso diferentemente. Sou favorável à Lei da Paridade, considero que há muito deveríamos ter aperfeiçoado disposições a que falta caráter vinculativo e, enquanto Deputada, na Assembleia da República, sempre me manifestei nesse sentido, pela palavra e pelo voto, em oposição a teses então oficiais do meu partido (em que apenas Leonor Beleza e Marcelo Rebelo de Sousa, que não era deputado, estavam do meu lado da barreira). Tenho, todavia, a consciência de que é preciso lutar também com outras armas, para alcançar a igualdade efetiva.

Há muito – logo após a Revolução de 1974, com a Constituição democrática de 1976 – está a plena igualdade entre mulheres e homens consagrada no nosso sistema. Esse foi o tempo histórico em que terminou o longo combate das (e dos) sufragistas, que se centrava, e se ganhou, na esfera jurídica. Porém, removido o obstáculo que a própria Lei constituía, logo outros se levantaram nos vários domínios, em que a força vinculativa e sugestiva, ou pedagógica, do Direito tem as suas limitações. Podemos, é certo, ainda corrigir na legislação ordinária imperfeições ou desconformidades constitucionais, criar mecanismos de controle da aplicação dos comandos legais e da promoção de oportunidades iguais. Contudo, o centro estratégico de uma mudança profunda de mentalidades e de práticas deslocou-se, definitivamente, do terreno da legiferação para o da vivência das leis. Não basta impor juridicamente a igualdade salarial, as mesmas oportunidades de progressão profissional ou de participação cívica e política para que elas aconteçam de facto. Não podemos ignorar os expedientes generalizadamente usados para manter o “status quo” – ou seja, 91% de homens presidentes de Câmara no todo nacional e uma percentagem superior, a rondar os 100%, nas capitais de distrito, nas mais importantes. Se a questão fosse, sobretudo, de “mentalidade”, de “aceitação social”, de “socialização”, como pretendem alguns doutos investigadores, como Luís de Sousa (Instituto de Estudos Sociais) ou de “tradições preconceituosas”, como defende Sandra Ribeiro, a presidente da CCIG, o fenómeno deveria sentir-se muito mais no mundo rural do que nas grandes cidades cosmopolitas! Aquelas condicionantes terão algum peso, mas verdadeiramente determinante é a organização partidária, o “baronato” instalado nas estruturas locais, que se defende “com unhas e dentes” da abertura desejada pelas cúpulas de Lisboa (e não em todos os quadrantes, como sabemos, mas, ao menos, em alguns). Di-lo, por exemplo, um sociólogo mais do que teórico, com a sua grande experiência de Governo e Parlamento, António Barreto: “O sistema político e social está organizado de forma a favorecer os homens. O menu de escolha, de oferta, está enviesado a favor dos homens. Mantém o predomínio masculino”.

A palavra-chave é “menu de escolha”. A nível nacional, para o Parlamento e para o Governo, têm poder de decisão na escolha os órgãos máximos dos partidos, e o nº 1, o primeiro-ministro, o secretário-geral ou presidente do partido e, por isso, a Lei da Paridade é, mais ou menos, respeitada, e o progresso tem sido constante e visível. A nível local, não, pois no “menu de oferta” as mulheres estão (quase) sempre colocadas nas listas o mais abaixo que o “diktat” legal permite. E são cabeças de lista (quase) só em circunscrições onde esse partido não tem perspetivas de vencer… Nas últimas eleições, o PCP escolheu 80 mulheres cabeças de lista, o PS 44, o PSD 31, o Chega 30, o BE 27, o CDS 17, o PAN 13, a IL 6 e o Livre, 3. Contas finais elucidativas : mais de 250 candidatas à presidência da Câmara e apenas 29 eleitas…

3 – E em Espinho, como vamos, neste aspeto? Tal como acontece nas maiores cidades do país, nunca aqui se elegeu uma mulher para a presidência, mas, por acaso, já houve uma que, a partir da vice-presidência, ascendeu ao cargo e fez história com um brilhante desempenho. A senhora D. Elsa Tavares, de que todos nos podemos orgulhar.
Na presidência da Assembleia Municipal já se contou com duas ilustres espinhenses e agora apresenta um executivo camarário que cumpre plenamente os ditames da Lei da Paridade, com quatro homens e três mulheres. Em termos da maioria socialista, é rigorosamente paritário – dois homens e duas mulheres – e, embora na dimensão qualitativa os homens ocupem os lugares cimeiros, as vereadoras possuem currículo que permite esperar um desejável equilíbrio na obra a fazer pela terra.

No panorama global do país, estamos, com certeza, nos lugares cimeiros.

Manuela Aguiar
Ex-secretária de Estado e ex-vereadora da CME