Nem chuva nem orvalho, cá dentro está um frio muito grande

Como regulador e orientador em toda a vasta matéria da saúde, a Direção-Geral da Saúde partilhou algumas orientações para estes dias mais frios que vivemos em todo o país. Primeiro, agasalharmo-nos da cabeça aos pés, com várias camadas de roupa, sem esquecer as extremidades do corpo, pois claro. Depois, aconselha a que verifiquemos o estado de funcionamento dos equipamentos de aquecimento que usamos em casa, com especial atenção para as lareiras e para não deixarmos nada ligado durante a noite.

Ao mesmo tempo, noutra “campanha”, a Direção-Geral da Saúde diz que, para impedirmos a propagação do novo coronavírus, devemos manter as divisões bem arejadas (aparece lá mesmo a imagem de uma janela bem aberta). Eu sei que vivemos tempos pouco estáveis e, portanto, vou passar à frente a informação contraditória passada pelas autoridades de saúde. Até porque, ao que parece, as casas dos portugueses são tão bem arejadas que nem será preciso manter as janelas abertas para o ar circular. Demasiado arejada a de Manuel Escobar que, em 2016, morreu de hipotermia dentro da própria casa, em Alfândega da Fé, no distrito de Bragança.

O homem, de 68 anos, perdeu a vida para entrar nas estatísticas e pôr o nosso país, mais uma vez, bem destacado nos rankings internacionais. Vamos por ordem: Portugal é o quarto país da União Europeia com as casas menos protegidas porque os baixos salários não são capazes de olhar para isso como uma prioridade (alerta a Confederação Europeia de Sindicatos, em janeiro deste ano). Certo, mas toda a gente sabe como o nosso país é procurado pela sua luz natural, ótima para manter as casas quentes. Pois, mas consta que essa luminosidade, que podia ser fonte de calor, não chega à maior parte das habitações. Dados do segundo ranking: somos os vice-campeões da União com as casas com menos luz natural (segundo o Eurostat, em finais de 2020). O que nos resta? Forçar o aquecimento através de equipamentos? Excelente ideia, se conseguirmos – e claro que nenhum de nós consegue – ignorar a constante notícia de que temos a eletricidade mais cara entre os congéneres europeus (segundo o Mercado Ibérico de Eletricidade, no conjunto do ano, tivemos o terceiro preço médio mais alto da União, com um valor de 89,38 euros).

Por fim, chegamos a Manuel Escobar e tantos outros: há menos de 20 anos (espero que os dados mais recentes contrariem), Portugal era dos países da União Europeia onde mais se morria por falta de condições de isolamento e aquecimento nas casas, segundo um estudo de especialistas da Universidade de Dublin que comparou 14 países europeus. Portugal, o país que atrai meio mundo por causa do clima, deixa os seus a morrer de frio. É a dita pobreza energética, já lhe arranjámos uma definição e tudo.

“Portugal, o país que atrai meio mundo por causa do clima, deixa os seus a morrer de frio. É a dita pobreza energética, já lhe arranjámos uma definição e tudo”

Há quatro anos, a Quercus e o Portal da Construção Sustentável questionaram e concluíram que cerca de 74% dos portugueses consideram as suas casas frias no inverno, confirmando elevados gastos de energia para colmatar as necessidades de aquecimento. E apenas 1% afirma viver numa casa termicamente confortável.

Quando trabalhei mais de perto com engenheiros, todos tinham a solução na ponta dos dedos: construir casas termicamente mais inteligentes, com materiais de melhor qualidade e, nas habitações já existentes, fazer pequenas obras que permitam um maior isolamento nas beiras das janelas, das portas, do telhado, das paredes. Afinal é fácil ter as casas mais quentes para evitarmos morrer de frio no inverno. É mais caro, no entanto, e aí já se sabem as conclusões: segundo um estudo do início do ano, 38% dos portugueses diziam não ter disponibilidade financeira para fazer melhorias no isolamento das habitações. Durante anos, as escolhas foram sempre pelos materiais mais baratos e a estética também prevaleceu na sua maioria. Custos e mentalidades parecem repartir culpas e o que vemos, segundo o relatório de atividades do IFRRU (Instrumento Financeiro para a Reabilitação e Revitalização Urbanas), é aproximadamente um milhão de edifícios a necessitar de intervenção.

Ao que parece, as exigências térmicas na construção, mais rigorosas desde 1990, não estão a surtir um efeito assinalável porque esbarram com mais estatística: ao que garante o “Energy Efficiency Watch Survey”, entre 2012 e 2015, Portugal registou a segunda maior descida na evolução das políticas de eficiência energética da União Europeia. E pelos vistos, a maioria dos portugueses não faz ideia do que seja a FTH, o documento que informa sobre as características do prédio (construído ou com obras após 2004), onde constam estas questões do isolamento e afins. O NZEB (Nearly Zero Energy Building) que define edifícios com necessidades quase nulas de energia é, claro, ainda utópico.

Há esforços, claro que sim, como a inclusão do tema da eficiência energética no Plano de Recuperação e Resiliência, ou o programa “Edifícios Mais Sustentáveis” que cobriu parte das despesas de melhoramento energético em casas anteriores a 2006, mas com parcos resultados.

Eu por mim aqui estou, a escrever este texto com as mãos quase congeladas, não sei quantas camadas de roupa em cima, mais meia dúzia de mantas para não ligar o aquecedor. Pelo dinheiro que custaria ao fim do mês, pelo abafado do ar que me incomoda a respiração e porque consigo imaginar facilmente o calor a sair pela janela (dupla, mas sem caixilharias adequadas e, ao que tudo indica, a contribuir para 25 a 30% das perdas térmicas) atrás de mim. A aplicação da meteorologia diz que a temperatura exterior é de nove graus Celsius e garanto que no interior o termómetro não está nem perto dos 22 graus recomendados. Lá fora não está chuva nem orvalho, mas aqui dentro está um frio muito grande. E desnecessário.

Cláudia Brandão
Jornalista