Habitação: e depois do adeus do PRR, quem paga?

O direito à habitação é consagrado na Constituição da República Portuguesa, incumbindo ao Estado assegurar o direito à habitação através da programação e execução de políticas de habitação. Em 2018, o Conselho de Ministros veio estabelecer o que designou de Nova Geração de Políticas de Habitação. O seu objectivo primeiro visa dar resposta às famílias que vivem em situação de grave carência habitacional através, nomeadamente, do 1.º Direito – Programa de Apoio ao Acesso à Habitação.

O Programa 1.º Direito visa apoiar a promoção de soluções habitacionais para pessoas que vivem em condições habitacionais indignas e que não dispõem de capacidade financeira para suportar o custo do acesso a uma habitação adequada.

Este programa baseia-se numa proposta de programação e integração de soluções, as quais devem ser programadas no quadro de Estratégias Locais de Habitação, instrumento que deverá ser elaborado e aprovado pelos Municípios, e concertado com o Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU).

Quando se discutem as medidas em debate público relativamente ao pacote de medidas apresentado pelo Governo, Mais Habitação, e de acordo com a informação do IHRU, são 260 os Municípios com estratégias aprovadas ao abrigo do 1.º Direito (84% dos 308 Municípios), dos quais 243 (79%) têm acordos de colaboração /financiamento celebrados com o IHRU para financiamento das suas soluções habitacionais.

Na circunstância do Mecanismo de Recuperação e Resiliência (MRR), o Estado Português inscreveu no Recuperar Portugal – Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) português a Componente da Habitação com uma dotação de 1.211 milhões de euros para financiar o investimento relativo à resposta habitacional para 26.000 famílias até 2026, a operacionalizar pelo IHRU e pelos Municípios, no financiamento de soluções habitacionais previstas nas Estratégias Locais de Habitação.

As Estratégias Locais de Habitação, sendo de elaboração especifica a cada Município, apresentam uma larga diversidade de âmbito e de dimensão de investimento, entre programações mais modestas (com previsão de investimento a curto médio/prazo inferiores a 10 milhões de euros), e programações com maior dimensão de investimento, superior a 50 milhões de euros, com uma profusão de estratégias com previsões de investimento entre 15 a 30 milhões de euros.

Tratam-se de documentos estratégicos e programáticos, porém em muitas situações dão-se os casos da programação de investimento quinquenal representar mais do que o orçamento anual desses municípios, o que dirá desses instrumentos de programação e/ou da capacidade de investimento e de realização desses Municípios em termos de esforço de investimento, num curto período de tempo. Ou seja, existem Municípios em que o investimento programado para a habitação, em cinco ou menos anos, é superior a todo o seu orçamento anual.

Ainda que se considere que existe disponibilidade de financiamento no âmbito do PRR, qual a efectivação de investimentos tão avultados para um conjunto alargado de Municípios, de tão largo espectro de investimento num tão curto período de tempo?

Tem-se assim a questão temporal, para a qual é necessário mobilizar competências para a programação, elaboração de projectos, realização de procedimentos concursais, execução e construção/reabilitação de habitações, e conclusão das mesmas em três anos, para um contexto de investimentos alargados.

Mais, veja-se que em Junho de 2023, e portanto três anos de encerrar, o PRR tem na dimensão que inclui a componente da habitação, uma execução de apenas 11% relativa a pagamento directo a beneficiários, o que desconsiderando os mecanismos de adiantamento, representa uma taxa de execução de realização de investimento inferior.

Mais, os termos de regulamentação e apoios do PRR, remetem para os mecanismos e critérios de financiamento do Programa 1.º Direito, os quais, não têm sido ajustados, significando assim que os pressupostos da determinação de custos elegíveis e financiáveis, estão aquém dos custos de mercado face à situação inflacionária e que não acompanham os custos de mercado, para além da resposta incipiente do mercado da construção que não tem acompanhado e dado resposta às necessidades simultâneas de investimento.

Pelo que o que sucede é que os Municípios terão de financiar uma parte maior e cada vez mais substancial de custos de investimento que não são financiáveis e que terão de financiar com os seus próprios recursos.

A certeza é que na ânsia e pressão de responder a necessidades imediatas e urgentes, todos estes custos não estarão a ser ponderados da melhor forma, na sua dimensão e aplicação, e o que representam para os próprios Municípios na sua gestão orçamental e previsional de capacidade de investimento, enviesando potencialmente os seus orçamentos e/ou limitando a sua esfera de acção noutras áreas de política pública local. Na certeza de que os recursos são escassos, e na competitividade por recursos, o que se coloca em pressão a mais numa área de investimento, retirará a outras.

Ademais, de igual forma, talvez não esteja também a ser reflectido o que representará um volume significativo de habitações ou de parque habitacional adicional, num período tão curto de tempo, que integrará a esfera do parque habitacional dos Municípios.

Compreenda-se que o PRR financiará soluções habitacionais para 26 mil famílias. Tal será o aumento no parque habitacional físico dos municípios que terão um acréscimo de equipamentos e infra-estruturas para gerir. O PRR só financia a construção /reabilitação. Mas então e a gestão?

Os Municípios terão que fazer face a todos os encargos de manutenção, gestão, requalificação, reabilitação. Mais a provisão de competências de gestão, meios humanos e técnicos, e de dinâmicas de inclusão de famílias carenciadas, que para além da intervenção infra-estrutural e da resposta material de habitação, carecerão de iniciativas de inclusão social adequadas ao contexto familiar, em resposta a vulnerabilidades e situações de exclusão específicas.

Num universo de 26.000 habitações, poderá ascender a mais de 35 milhões de euros anuais em despesas correntes. Um valor significativo que será tanto mais relevante quanto as necessidades de conservação e renovação, e que perdurará por todo o tempo de vida útil do parque habitacional.

Quem estará a reflectir quanto é que estes investimentos vão custar no futuro? Como vão os Municípios financiar um acréscimo significativo de despesas nos seus orçamentos anuais /plurianuais?

Estas verbas não estão contempladas no PRR nem em quaisquer outros instrumentos de financiamento. Quem e como vai pagar estes custos todos?

Escrito em desacordo ortográfico.

Tito Miguel Pereira

Consultor