O Medo

– De que tens medo, Leonor?

– De nada!

– Mesmo do escuro que nos desorienta?

– Não, não tenho medo dele.

– Nem do lobo mau?

– Não, e ele não é mau …

Neste delicioso e ingénuo diálogo entre avó e neta pequenina faz-nos pensar o porquê das crianças terem medos, ou não. Leonor, diz não ter medo de nada. Arrojada e determinada nada a amedronta. Será bom? Será mau?

O medo faz parte da vida e é ele que nos permite saber os nossos limites e contribui para a preservação da espécime. O medo faz, por exemplo, com que não atravessemos a estrada com o sinal vermelho. O medo faz com que não arrisquemos subir até um local demasiado alto ou descer a um lugar demasiado fundo. O medo faz-nos recuar e não entrar num túnel escuro sem avistar, do outro lado, a luz. Mas o medo também nos confina, também nos priva de crescer.

O medo controla de certa forma o nosso modo de estar na vida. Temos medo do que não conhecemos, ficamos sempre de pé atrás perante o desconhecido. Não arriscar por medo porque somos cautelosos e tememos o desconhecido será uma medida cautelar, mas não será também redutor nunca arriscar e partir para a aventura?

As pessoas com muitos medos acabam por ser também pouco arrojadas. Eu tinha medo de tudo em criança. As infâncias com muitos medos não são muito felizes. Antigamente, as crianças temiam o ‘Homem do saco’, ou o ‘Sarronco’. Havia ainda um medo maior: o diabo. Fruto de uma educação religiosa que defendia o bem e o mal por símbolos. Metaforicamente, o Mal era assumido por uma figura tenebrosa, feia e vermelha, de boca grande e arpão perigoso. O Bem, esse era a luz divina, os anjos, as estrelas …Lembro-me do dia anterior à minha comunhão, em que o padre nos veio visitar ao Colégio para nos dar os conselhos finais sobre a nova etapa. Vim de lá assustada e com tanto medo que este me acompanhou pelos anos seguintes. Este efeito de produzir pelo medo o processo de transformação para tornarmo-nos melhores pessoas nunca me pareceu apropriado e direi que é mesmo traumático. Completamente oposto a esta versão, lembro o livro ‘Aparição’ de Vergílio Ferreira. Nele anuncia-se que Deus já não existe e, por isso, temos de viver não a pensar na redenção eterna, mas antes, a viver com dignidade a nossa vida sem estarmos condicionados pela recompensa ou o castigo final. Temos de ser suficientemente medrosos para preservar a vida, mas nunca devemos deixar de arriscar e lutar contra o medo não pelo Bem ou pelo Mal, mas simplesmente para sermos melhores Pessoas.

Lembro as palavras de Eduardo Galeano acerca do que é o medo global: “Os que trabalham têm medo de perder o trabalho. Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quando não têm medo da fome, têm medo da comida. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras.” E, se calhar, acrescento eu “há quem tenha medo que o medo acabe.”

Não são estas as questões pertinentes a inundar-nos a mente, atualmente?

Medo de vencer as adversidades da natureza, do emprego, medos da guerra, da falta de alimentos, da doença, das pandemias, medo de envelhecer, de falhar…

Entretanto, aos poucos, vamo-nos habituando, e ficamos mais resistes. Por exemplo, tivemos medos aquando do surto pandémico, medos que nos fizeram fazer promessas de uma vida diferente, mas depois, o medo passou e já ninguém se lembra delas e dele. Assim, também o medo se tornou efémero. Agora, terão de chegar outros medos porque já estamos habituados a muitos deles. Estranhas perspetivas a merecer uma reflexão.

Sim, trata-se de um novo fenómeno: infelizmente a mediatização de momentos dramáticos que deveriam suscitar compaixão e medo acabam por entrar de tal maneira nas nossas rotinas que tudo nos parece normal, ou quase normal.

Quanto às crianças, que não conhecem ainda estes conceitos, será uma bênção não terem medos. Viver uma infância sem medos é viver mais feliz! Terão mais tarde, ao longo da vida, de enfrentar muitos e outros medos.

Arcelina Santiago

Professora