Mulher terias de ser

Mulher terias de ser para saber que tens que aceitar um comentário “positivo” ao teu corpo, ao teu aspeto. Que é um elogio e não se diz dos elogios que não foram pedidos e devem ser recebidos de bom grado. De preferência com educação, com um “obrigada”.

Mulher terias de ser para perceber que as tuas conquistas desportivas, profissionais, pessoais (you name it…) não são absolutas. São “para uma mulher”, são “apesar de seres mulher”.

Mulher terias de ser para não rires quando alguém diz “bates como uma mulher”. Não é “só uma piada”, mas um estereótipo de mente limitada. São gerações perpetuadas de mentes limitadas.

Mulher terias de ser para teres a atitude automática de fechar mais um botão da camisa, puxar a saia mais para baixo, vestir sempre mais uma camisola. Pensar duas vezes no que vestir consoante o sítio para onde vais, a quantidade de homens que lá vão estar e se vens embora sozinha.

Mulher terias de ser para mudar de passeio para evitar cruzar com um grupo de homens ou com um solitário numa rua vazia. Seja noite, seja dia.

Mulher terias de ser para saber que um sorriso a um piropo, a um abuso, ao assédio é apenas medo. É ceder por medo, não é consentir.

Mulher terias de ser para reconhecer a existência de um machismo estrutural. Não importa o “há homens que não”, o “nem todos os homens são”, ou o mais delicioso “já há muitas mulheres que” ou “as mulheres também”. Mulher terias de ser para não perder a paciência e explicar pela milésima vez por que é que existe um Dia Internacional da Mulher e não do Homem.

Mulher terias de ser para ter preparada a resposta que vais dar quando, mãe, saíres à noite e lá vier o “que fizeste à criança?”. Mulher terias de ser para esperar o olhar de esguelha se essa resposta não for “ficou com os avós”, mas sim “ficou com o pai”.

Mulher terias de ser para saber, de antemão, que não importa a dimensão da tua vitória desportiva. No final, do que se falará, do que se falará sempre, é de um beijo. Daquele beijo que não quiseste, daquela atitude que voltaste a desvalorizar pelo hábito, pelo receio, pelo poder tóxico que te esmaga e não te olha ao mesmo nível.

Mulher terias de ser para não te passar pela cabeça aplaudir discursos para lá de machistas: insultuosos, prepotentes, vindos do alto da arrogância de quem acha “momentos de carinho” com jogadoras que estão sob sua direção normal e “consentidos”. Mulher terias de ser para perceber a diferença entre não sentir força para dizer que te sentiste abusada e acreditar que não há qualquer problema. Que já nem se sabe onde está a fronteira. Que, vai-se a ver, e foste tu que deste a entender que não havia barreira.

Mulher terias de ser para não apresentar queixa por assédio porque te pressionam, te ameaçam, tão simplesmente te dizem, ao mais alto nível, com a força castradora de todos os dias, que não o faças.

Mulher terias de ser para veres uma imagem de um homem – “patrão” – a agarrar a cara de uma mulher – “funcionária” – e espetar-lhe um beijo em público e entender, facilmente, o que há para lá dela. Para intuir a dimensão do icebergue.

Mulher terias de ser para perceber facilmente que, para ser considerado abuso, não é o abusador que temos de ouvir e dar palco, mas à vítima. Quando e nos termos que ela considerar oportunos.

Mulher terias de ser para entender por que o primeiro impulso é desdramatizar, mas não deixar de pensar no assunto, que não é correto, que não quiseste, que queres deixar claro que não volta a repetir-se.

Mulher terias de ser para não apresentar queixa por assédio porque te pressionam, te ameaçam, tão simplesmente te dizem, ao mais alto nível, com a força castradora de todos os dias, que não o faças. Mulher terias de ser para saber que nunca o farias sozinha, se não tivesses o apoio – de outras e outros – para o fazer, para te assegurarem que, se não foi consentido, não pode – mesmo – acontecer.

Mulher terias de ser para perceber o ridículo de organizar comissões só de homens para discutir – e decidir – assuntos que afetam as mulheres. Aqui vale para beijos, interrupções da gravidez, quotas, ocupação de cargos de direção, baixas por mestruação e por aí fora. Ficávamos aqui o dia todo.

Mulher terias de ser para saber que, sim, tens que gritar, partir a louça, organizar manifestações para que eles (e mesmo elas) entendam que não, não é normal. Mulher terias de ser para nunca te cansares de explicar. De explicar que não pode ser normal como sempre te fizeram sentir, como te ensinaram, desde muito cedo, a proteger-te, como ouviste tantas vezes que “uma mulher não deve porque se não os homens”.

Mulher terias de ser para escolher não representar o teu país “só por causa de um beijo”. Mulher terias de ser para saber, tão bem, por tanto, que não se trata “só” de um beijo. Mas de uma vida de poder de um sobre o outro. Ou melhor: deles sobre elas. Nas mais variadas formas.

Mulher terias de ser para dizer: senhor Presidente, tal como 400 vítimas de abusos pela Igreja é um número particularmente elevado, não, esta não é “uma questão menor”.

Mulher terias de ser para saber, claro como água, que há ainda demasiadas vitórias a conquistar.

Cláudia Brandão
Jornalista