Viagens espaciais

Chove, chove mesmo muito esta noite, e o percurso que nos traz de regresso de trás dos montes facilmente nos faz sentir mais pequenos. Por entre o dilúvio, o carro preto, qual formiga, sobe e desce, faz e desfaz curvas, move-se à velocidade possível com destino bem traçado. Devagar-devagarinho, sim, mas o atrasar do ponteiro do relógio a meio da viagem cria a ilusão de uma hora de vida ganha – ilusão essa que rapidamente se desvanecerá nos próximos dias, quando a escuridão precoce nos fizer hesitar entre o “boa tarde” e o “boa noite” ao entrarmos na padaria para lanchar.

Não me recordo, ao certo, de quando comecei a apaixonar-me pelos lugares e pelos momentos que praticamente se marimbam para o andar do relógio

Chaves
Gosto de sítios assim, onde o tempo não corre ao passar. E de pessoas assim, que não correm ao passar. Há alguns anos que, sensivelmente mês sim, mês não, tenho concertos ali. Quando, por um motivo ou outro, esta regularidade se interrompe, sinto falta do lugar, das gentes, das conversas ora mais profundas ora de circunstância. Sinto falta desse tempo que não nos atropela.

Tonda
O que me leva também a Tonda (Tondela, Viseu), a pequena aldeia que sempre me oscilou a memória pelo enorme espectro de experiências entre os banhos no tanque e os castigos da bisavó Flora, com aquele feitio tão mas tão especial que se alastrou pelas gerações seguintes. Tristes circunstâncias dos últimos anos acabaram por ter o condão de me fazer voltar mais vezes e de me dar a oportunidade de conhecer melhor o lugar. Mais ainda: de o cultivar como representação de alguém que me (nos) faz falta. Fui lá com o meu irmão há dias; apertadíssimos de tempo pelos compromissos à ida e à vinda. Mas enquanto estivemos em Tonda com os nossos, à mesma mesa onde se fez a génese desta família, o tempo quase parou. Sabe tão bem…

Aveiro
Não me recordo, ao certo, de quando comecei a apaixonar-me pelos lugares e pelos momentos que praticamente se marimbam para o andar do relógio. Mas não tenho dúvidas de que é uma consequência de anos e anos a deixar-me levar por uma sofreguidão de viver que me faz marcar isto logo a seguir àquilo e sem margens para atraso porque depois há mais e mais e mais ainda. Lembro-me bem, isso sim, da viagem de comboio para Aveiro em que o meu colega e amigo Albano diagnosticou este excesso de actividade como sendo coisa de família: “És tal e qual o teu tio!” Exactamente 20 anos depois de ter terminado a licenciatura, como que para confirmar que a patologia ainda cá paira, estou de volta à Universidade de Aveiro para um-curso-que-é-quase-impossível-conciliar-com-as-outras-mil-coisas-em-que-estou-metido. Sem o Albano, sem o Adriano, sem a Cláudia, sem a Mónica, aquele que supostamente seria o mesmo sítio revelou-se um lugar estranho. E mostrou-me uma vez mais que, por muito que queiramos iludir-nos com ponteiros que giram para trás, o relógio rege-se menos por saudosismos do que pelos novos significados que possamos atribuir aos lugares da nossa vida.

Marte
Novos significados trazem invariavelmente novas ligações, novos caminhos, novos locais. E não é que as viagens mais frenéticas também podem fazer-nos acabar em refúgios em que o tempo, ainda que passando a voar, se reveste de formas que não lhe conhecíamos? Quando surgiu a ideia de dar um concerto de MARTA em Marte a partir do Planetário de Espinho, estava longe de imaginar que os efeitos do Espaço para a alma pudessem ser tão parecidos com os de Chaves ou os de Tonda. Pelo desafio, pela equipa do Centro Multimeios, pela verdadeira família com que trabalho, pelo público que alinhou na missão e esgotou a sala, pela indiscritível energia que ali circulou nessa noite. E pelo ensejo de entrelaçar realidades. Levámos para Marte, e mais além, três passageiros especiais: Quinta, Silva e SPRocha. O poder da arte vive muito de químicas como a que se gerou desde o primeiro momento com estes rappers incríveis que, nos últimos meses, têm feito das ruas de Espinho o palco perfeito para se expressarem. Sou capaz de jurar que, juntos, cancelámos a gravidade e nos deixámos siderar.

Estou de volta à Terra, continua a chover. Nesta viagem regada a temporal já houve tempo para, em directo, qual final Olímpica, rejubilar com a vitória do SPRocha no Red Bull Francamente, a maior batalha nacional de rimas improvisadas. Impressionantes, a lata e a habilidade do “miúdo” num contexto que faria tremer qualquer um. Dou por mim e pelos meus companheiros de viagem eufóricos com o grande feito e felizes por nos termos deixado envolver por tanto talento. Nem sempre é imediato, mas sabem que mais? Ir para lá do óbvio, do formatado e do que nos tentam impor em massa todos os dias é outra daquelas forças que podem iludir o tempo. Permitam-se a ir ver a magnífica performance do SPRocha nesta competição; aproveitem e deliciem-se com o dom do Quinta, do Silva e de todos os outros que tão bem baralham e dão palavras. Eles andam por aí, a rimar à porta de vossa casa ou, no limite, ao virar de um clique no smartphone.

Ricardo Fidalgo
Músico