Na manhã do dia 25 de abril de 1974, quando tomei conhecimento de que estava em curso uma revolução para derrubar a ditadura do chamado Estado Novo, tinha feito há poucos dias 42 anos. Acompanhado da Dulce, fomos para o nosso escritório do Porto, para o encerrar e dispensar do trabalho nesse dia a nossa empregada. Dirigimo-nos à Avenida dos Aliados onde encontrámos um tanque militar com soldados serenamente nos respetivos lugares, sem oposição de ninguém. A primeira e corajosa manifestação de regozijo foi-nos dada por um pequeno grupo de pessoas descendo a Avenida, desfraldando bandeiras do Partido Comunista Português. Uma sensação de atrevimento e de coragem e de não total aprovação que esse espetáculo me proporcionou, levou-me a concluir, mais tarde, que também eu próprio, apesar de acérrimo opositor à Ditadura, ainda não estava nesse dia preparado de todo para receber e entender a liberdade que a revolução nos estava a restituir e por que tanto lutara.
Só ficámos descansados quando, já noite fora, o locutor Fialho Gouveia apresentou na televisão os elementos da Junta de Salvação Nacional saída do triunfante movimento militar revolucionário.
Desde menino que, em Espinho, onde nasci, me tornei, pelo exemplo de meu saudoso Pai e mais tarde por convicção e princípio de vida, um acérrimo opositor da Ditadura. Meu Pai que para poder iniciar a sua carreira de funcionário público na Câmara de Espinho, foi obrigado a assinar uma vergonhosa declaração anticomunista para a exercer.
Bem cedo tomei conhecimento do tratamento que Salazar dispensava a todos aqueles que se atreviam a pública, ou mesmo secretamente, opor-se à sua ditadura, com uma vigilância e férrea e impiedosa repressão a qualquer tipo de manifestação livre de ideias contrárias às do seu opressor regime. Foram seus instrumentos privilegiados a polícia política do regime, a impiedosa PIDE e a censura prévia a todas as publicações públicas, nomeadamente à dos jornais, que só podiam ser distribuídos depois de obterem a indispensável chancela “Visado pela Comissão de Censura”. A repressão da PIDE ia desde arbitrárias prisões e deportação, chegando às torturas, à morte e mesmo ao assassínio dos que implacavelmente perseguia. Liberdade de expressão, de reunião de imprensa e de criação de outros partidos e de eleições universais, livres, plurais e por voto secreto eram im[piedosamente proibidas. Era o tempo em que a ordem oficial se manifestava pelas palavras “Tudo pela Nação! Nada contra a Nação!”. E “Quem manda? Salazar! Salazar! Salazar!”. E “Quem vive? Portugal! Portugal! Portugal!”.
O primeiro grande choque da repressão da PIDE tive-o com o assassínio do conhecido médico de Nogueira da Regedoura, comunista convicto e grande amigo da minha família, Dr. Carlos Ferreira Soares. A roupa que vestia quando o assassinaram e com os buracos bem visíveis dos tiros que o atingiram foi religiosamente guardada por minha Mãe. E meu Pai teve a coragem de assinar a sua certidão de óbito com a expressão “morte violenta com arma de fogo” como causa da sua morte.
Certo dia regressei a casa, como aluno da 3ª Classe da então Escola Primária da Feira e comuniquei a meu Pai com inocente satisfação alguns nomes de grandes portugueses da História de Portugal que o meu professor Sr. Boavida me ensinara, entre eles o de António de Oliveira Salazar. Ao ouvir-me, meu Pai fulminou-me com olhar severo e ensinou-me assim: “Ó rapaz, olha que Salazar pode ser um homem grande, mas grande homem é que não é”, sábia frase que nunca mais esqueci e de que sempre me lembro nos dias de hoje quando oiço ou leio o nome de grandes homens da nossa história ou do nosso presente.
Quando estudava na Faculdade de Direito de Coimbra militei no ano de 1955, como opositor à ditadura de Salazar, no MUD Juvenil, ignorando então que essa organização era um produto e uma extensão do Partido Comunista Português. Fazíamos reuniões secretas numa célula presidida pelo José Augusto Seabra que futuramente foi deputado à Assembleia Constituinte e à Assembleia da República, Ministro da Educação do IX Governo Constitucional do chamado Bloco Central e Embaixador de Portugal na UNESCO.
“Bem cedo tomei
conhecimento do
tratamento que Salazar
dispensava a todos
aqueles que se atreviam
a pública, ou mesmo
secretamente, opor-se à
sua ditadura”
A nossa mais visível acção foi a pichagem nocturna das paredes do então Estádio do Calhabé, futuro Estádio Municipal, então ainda em fase de acabamento, frases garrafais contra a Guerra Colonial, frases que no dia seguinte tive a alegria de ler à luz do dia quando fui ver um jogo da Académica de Coimbra.
Essa minha intensa actividade política nesse ano letivo valeu-me três dias de prisão nas cadeias da PIDE, primeiro na sede do Porto, na então denominada Rua do Heroísmo, por ter sido detido em Gaia , na morada de meus Pais onde me refugiara, na esperança de, longe de Coimbra, não ser abrangido pela série de companheiros que via aí estarem a ser sucessivamente presos, e depois em Coimbra, para onde fui transferido, na prisão da sua sede da Rua de Antero de Quental, dirigida então pelo temível e odiado Inspetor Sachetti. E, mais importante, valeu-me um inevitável chumbo no exame final – então de todas as cadeiras numa só manhã ou numa só tarde – com um injusto prejuízo financeiro para o meu Pai que tantos sacrifícios fazia para dar um curso académico a cada um dos seus filhos.
Já com o curso de Direito e exercendo já a minha profissão de advogado, e já casado, fui escolhido em 1969 pela CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática) para, sentado numa cadeira e bem visível no palco, representar a geração dos mais novos no comício político que se realizou na sala do então Cinema de S. Pedro, vigiado evidentemente pela PIDE, manhosamente consentido por Marcelo Caetano, num simulacro de vida democrática.
Nas eleições para a Assembleia Nacional que se lhe seguiram, fui também o fiscal – não havia ninguém mais para fiscalizar – dessa força partidária na mesa eleitoral que houve no átrio da Câmara Municipal de Espinho e nessa qualidade assisti de pé, pois não me foi dado sequer um banco para me sentar, a toda a farsa eleitoral que lá se realizou, parte de igual farsa de uma eleição geral de apenas 1,8 milhões de recenseados, num universo de 9,5 milhões de portugueses. O Presidente da Mesa, cujo nome me dispenso de aqui lembrar, teve o cuidado de antes de começar a votação me mostrar descaradamente a urna vazia. Seguiu-se pelo dia fora a votação à qual compareceram quase apenas funcionários públicos, a maior parte deles com receio de perderem o emprego se não fossem votar. E no fim fui impedido de assistir à contagem dos votos pois o dito presidente e os seus secretários com toda a tranquilidade e descaramento levaram com eles a urna para o primeiro andar da Câmara para os contar. O resultado a seguir comunicado foi, como era de esperar, o de 88% dos votos … a mesma percentagem, afinal, que obteve PUTIN, o ditador Russo, nas eleições presidenciais de 2024 da Federação Russa.
Após o 25 de Abril não foi fácil a minha opção política, dada a diversidade de partidos que tinha à minha escolha. Eu e a Dulce estivemos com Mário Soares e Sá Carneiro no grandioso comício do Estádio das Antas onde ouvimos da boca de Mário Soares a corajosa e célebre frase “Eles são como Tigres de Papel”. “Eles” eram os que tentavam instaurar antes das eleições uma ditadura de sentido contrário à do anterior regime. Com o mesmo propósito, eu e a Dulce percorremos nessa altura muitas vezes as ruas do Porto, em acção conjunta do PPD e do PS, gritando para os que nos olhavam das janelas à nossa passagem: “Amigo, anda, não fiques à varanda”.
Graças à Liberdade que me foi concedida pelo 25 de Abril, assisti a sessões de esclarecimento e a comícios do CDS, do então PPD e do PS. No dia 25 de Abril de 1975, votei livremente e por voto secreto no então PPD nas eleições para a Assembleia Constituinte e no dia seguinte apresentei-me voluntariamente na sua sede para me inscrever naquele que sempre foi o meu partido, do qual, todavia, algumas vezes discordei e discordo e do qual fui várias vezes presidente da sua comissão política concelhia.
“A repressão da PIDE
ia desde arbitrárias
prisões e deportação,
chegando às torturas,
à morte e mesmo ao
assassínio dos que
implacavelmente
perseguia.”
E foi em sua representação, já denominado PSD, que fui eleito durante muitos anos membro da Assembleia Municipal de Espinho e seu Presidente, e, nesta qualidade, não só com os votos do meu partido, sendo para mim muito gratificantes ecos que me chegaram de que nessa qualidade fui sempre considerado um Presidente competente, correcto, respeitador e democraticamente tolerante para com todos os seus membros.
Nessa mesma qualidade fui durante quase oito anos, primeiro em regime de substituição e por último como efetivo, deputado à Assembleia da República, só não completando os oito anos por despeito, misturado com alguma ingratidão, de alguma pseudo-elite bem pensante de Espinho que nesse tempo nunca trouxe qualquer vitória política local ao PSD. Fica assim esclarecido que não beneficio do subsídio vitalício que nessa altura era atribuído aos deputados que completassem oito anos de exercício seguido ou intermitente.
“O dia 25 Abril de 1974
foi um dos dias mais
feli- zes da minha vida,
só comparável ao
dia em que conclui a
minha licenciatura em
Direito, ao dia do meu
casamento e ao dia em
que nasceram os meus
filhos e os meus netos.”
Na Política nunca tive inimigos, mas sim adversários. De alguns sou sincero amigo e de outros admiro-lhes a sinceridade com que defendem ideias diferentes das minhas e a competência e brilho com que desempenham em Espinho as suas atividades, no domínio do livre jornalismo, da música, da literatura e do teatro. E tenho a certeza que eles acreditam na sinceridade com que o digo.
E foi em completa liberdade de associação que fui, juntamente com espinhenses de ideias e credos diferentes dos meus, fundador e seu Presidente do Lions Clube de Espinho e fundador e seu primeiro Presidente da Liga dos Amigos do Hospital de Espinho, associando-me também livremente à Associação dos Antigos Alunos das Escolas da Feira e da Tourada e à Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra no Porto. Por direito próprio me associei também à Liga dos Combatentes, pelo serviço militar que prestei em Goa.
Das fragilidades da democracia tenho sempre presente a sábia lição do grande estadista que foi Winston Churchill: “A DEMOCRACIA É A PIOR FORMA DE GOVERNO, À EXCEPÇÃO DE TODAS AS OUTRAS QUE TÊM SIDO TENTADAS DE QUANDO EM VEZ”.
E embora se diga que o excesso de humildade pode ser vaidade, compreendem assim que possa humildemente pensar que ao longo da minha vida tenha sido um democrata.
Humildade que se baseia na plena consciência de, afinal, não passar de um minúsculo ser, num mundo que, segundo os últimos dados da ciência que conheço, nunca se saberá verdadeiramente quando e como começou, mas que se sabe seguramente que nunca vai acabar.
Na política internacional sou um incondicional opositor à bárbara invasão da Ucrânia pela Rússia do ditador Vladimir Putin, cujas tropas a estão impunemente a destruir, na sua terra e nas suas gentes, não aceitando como justificações próximas ou longínquas quaisquer razões de natureza étnica ou mesmo histórica.
Na guerra de Gaza, não aceito, condeno e revolta-me a inqualificável, horrível, desumana e desproporcional reacção da ingrata Israel que, esquecendo o seu passado, em nós ainda bem presente, retalia contra o massacre de 7 de outubro com igual massacre dos dois milhões de palestinianos que se acantonam nessa minúscula faixa de terra, que destroem desumanamente à bomba, deslocando, matando pelas armas e pela fome, para já, mais de 30 mil palestinianos, homens, mulheres e sobretudo crianças, não esquecendo os palestinianos que, a pouco e pouco, vão tentando matar e desalojar das suas terras da Cisjordânia por meio da acção de colonos israelitas ortodoxos. E tudo isso com a já não disfarçada mão dos EUA que lhes fornecem as armas e os meios necessários para atingir tais fins.
Tal como na Segunda Guerra Mundial de 1939/1945, embora ainda menino, já compreendi muito claramente que o lado bom era o dos povos, França, Inglaterra, União Soviética e EUA que, ou invadidos ou atacados, se bateram pelas armas e pelas armas derrotaram a Fascista Itália de Mussolini, a Nazi Alemanha de Hitler ou o imperialismo expansionista Japonês.
Por tudo o que acabo de afirmar, compreendem que diga e pense que o dia 25 Abril de 1974 foi um dos dias mais felizes da minha vida, só comparável ao dia em que conclui a minha licenciatura em Direito, ao dia do meu casamento e ao dia em que nasceram os meus filhos e os meus netos.
E também por isso conclua que estou eternamente grato aos corajosos militares que planearam e venceram a revolução que nesse dia maravilhoso derrubou a Ditadura e restituiu aos Portugueses a liberdade de que hoje desfrutam, apesar das desigualdades que entre nós ainda subsistem, mas que me permite, sem medo, livremente fazer este depoimento.
É a modesta homenagem que deste modo lhes posso prestar!
Ferreira de Campos