Mensagens de Natal

O Natal de 2021 vai ficar na memória como aquele em que milhões de familiares ofereceram, uns aos outros, um presente que não terá faltado em nenhuma casa portuguesa – o cuidado e a solidariedade de um teste anti-Covid!

1 – As longas filas para compras de última hora, desta vez, não aconteceram tanto nos centros comerciais como nas farmácias de bairro… Quatro ou cinco horas de espera à porta da botica constituíram ritual que chegou aos telejornais (nada de surpreendente num país, onde conseguem fazer intermináveis reportagens a propósito seja do que for, de uma banalidade simétrica em todos os canais, e rigorosamente à mesma hora…).

Não vi, porém, sublinhada uma faceta singular e, para mim, a mais interessante deste iniciativa voluntária de tantas centenas de milhares de portugueses: a preocupação altruísta, a sua verdadeira natureza de oferenda. De facto, o teste é quase sempre feito a pensar na família e nos amigos – muito em especial, no caso dos mais jovens, na sua relação com os mais idosos. A solidariedade geracional ganha, aqui, visibilidade numa girândola de afetos, no reencontro do Natal, preparado com alguns sacrifícios ou incómodos e não apenas com o que aquilo que o dinheiro pode facilmente comprar numa loja. E assim, por vias travessas, em gestos de responsabilidade e civismo, no vaivém de uma perturbante peste dos tempos modernos, se redescobre, de algum modo, o significado, que andava um pouco perdido, do Natal cristão.

Nos meus tempos de criança, a festa era uma grande reunião de família em casa da avó materna – muito tradicional na gastronomia, nos cânticos, no convívio animado pelas conversas dos maiores e pelo riso das crianças… Na sala de visitas não havia árvore de Natal, mas sim flores e um bonito presépio, com a Sagrada Família, os pastores, os animais e os Reis Magos. O significado religioso estava sempre bem presente e culminava no diálogo transcendental que eu mantinha com o Menino Jesus, pedindo-lhe os presentes, que um (relativo) bom comportamento justificava. E nunca ele me desapontou, porque ao acordar no dia 25 encontrei sempre, aos pés da cama, os brinquedos ambicionados. Não havia, no guião de celebrações todos os anos repetido, Pai Natal de barbas brancas e saco às costas, nem renas e trenós das florestas nórdicas. Era o reino do Menino, em que a divindade se tornava mais próxima e mais simples, no seu rosto humano de criança nascida numa família pobre e perseguida, que nos ensinava a simpatia para com os pobres e os perseguidos… 

Neste intervalo de décadas, a meu ver, o Natal foi-se tornando, cada vez mais, apenas uma festa de família, não desprovida de alegria e encanto, mas crescentemente dominada pela tentação consumista, que o universalizou, muito para além das fronteiras do cristianismo. Hoje, os tons de ouro e de prata cruzam-se com o vermelho vivo nas montras das lojas e nos enfeites das ruas, aqui em Espinho, como em Vancouver ou em Tóquio. A árvore natalícia, as músicas, os reclames, os postais de Boas Festas (na forma digital ou física), são iguais em quase todo o mundo. E os presentes, também – os que os amigos trocam entre si, os que as empresas oferecem aos colaboradores e clientes, os que as crianças pedem aos pais, a partir de catálogos e de anúncios de TV… 

“O temor da pandemia, com a colossal corrida à testagem, terá contribuído para recolocar a solidariedade dos gestos simples e genuínos no centro do nosso Natal”

2 – Paradoxalmente, o temor da pandemia, com a colossal corrida à testagem, terá contribuído para recolocar a solidariedade dos gestos simples e genuínos no centro do nosso Natal. Foi esta a omnipresente mensagem popular!

Mas, na verdade, a pandemia influenciou, igualmente, as mensagens dos poderosos, pelo menos aquelas a que tive acesso fácil através da televisão – a do Papa, a da Rainha de Inglaterra e a do Primeiro-Ministro português. Pude constatar como um mesmo tema pode ser glosado de formas tão diversas e um mesmo ponto de partida pode levar a domínios tão diversos. 

O Papa Francisco – um vulto branco na varanda da Praça de São Pedro – falou como o líder espiritual do mundo. Não por ser o Papa, mas por ser ele, Francisco. Nas suas exortações estão aqueles que a situação atual tornou mais vulneráveis, os povos atingidos por guerras esquecidas, os migrantes, os refugiados, as mulheres vítimas de violência doméstica, os jovens que sofrem abusos e “bullying”, os velhos que vivem na solidão… Está, incessante, o apelo ao diálogo, à paz, à intervenção das pessoas de boa vontade, que hão de permitir superar a crise. Inspirador!

A Rainha Isabel II, num elegante vestido de uma cor rosa forte, fez, em ambiente palaciano, uma comunicação serena e intimista, em que combinou, de uma forma magistral o elogio da alegria que se encontra nas coisas simples, a saudade contida da recente perda do marido, a esperança no eterno recomeço da história, simbolizada no nascimento de mais quatro netos, pois, como frisou, um nascimento é sempre promessa de infinitas possibilidades. A pandemia estava lá contextualizada, em fundo, como mais um dos obstáculos que sempre soube ultrapassar. Aos 95 anos, uma formidável imagem feminina!

O nosso António Costa proferiu, junto a uma prateada árvore de Natal, um discurso obsessivamente focado na Covid-19, tão banal como as comunicações da Graça Freitas. Nada de novo, coisa para esquecer. Ou talvez não… Se a temática da pandemia vier a ser dominante na campanha eleitoral das legislativas, poderemos dizer que se tratou do primeiro ato de campanha. Esta hipótese provável terá motivado todas as oposições a fazerem o mesmo tipo de críticas. Do PS, veio, pela voz de José Luís Carneiro, o isolado aplauso – e, por sinal, com melhor acentuação dos valores de fraternidade e da solidariedade e mais força mobilizadora.   

Para quê politizar a tal ponto uma data festiva?  Bem melhor andou, desta feita, o Presidente da República, que foi à missa do galo e se mostrou num simples convívio com os sem-abrigo. Num próximo Natal espero que se lembre de confraternizar também com os imigrantes e com os refugiados, que são, afinal, os que têm o estatuto com que nasceu, em Belém, o Menino Jesus.

3 – Confesso que me irritou a alocução do Primeiro-Ministro, não só porque não foi, no conteúdo, uma mensagem de Natal (a ideia do combate ao vírus surgiu por constituir, de momento, o “máximo denominador comum”) mas, sobretudo, porque ele é o político que, há apenas algumas semanas, proclamou o “dia da libertação” pandémica e levantou medidas restritivas de direitos e liberdades, que agora reintroduz, em dose reforçada e com o despropósito a que a DGS nos habituou.

O cúmulo dos cúmulos é a obrigatoriedade de um teste para ir ao cinema, onde a regra é as salas estarem quase vazias!

Não se pode negar a importância de testar, testar, testar. Todavia, grande parte deste esforço individual vai ser desbaratado pela falta de controle, pelo governo, das cadeias de transmissão do vírus. O mesmo governo que impõe o teste para entrar num cinema meio vazio, mas não em autocarros ou em comboio superlotados. Um governo que me dá “uma verdadeira sensação de insegurança”.

Manuela Aguiar
Ex-secretária de Estado e Vereadora da CME