Inflação, lembra-se?

Os últimos anos do Escudo e todo o período do Euro foram marcados por uma baixa taxa de inflação. Isto significa que grande parte dos portugueses hoje não se lembram do que é viver em inflação e, mesmo entre aqueles que viveram tempos de inflação, muitos não se recordarão do que isso é e das suas consequências.

Nos anos 80, Portugal chegou a ter taxas de inflação acima dos 20% durante vários anos seguidos. Quando era necessário ajustar a despesa do Estado, usava-se a taxa de inflação para desvalorizar os salários reais, fazendo uma austeridade mais agressiva, mas politicamente mais fácil porque se podia fazer sem nunca baixar o valor nominal dos salários. Viver com inflação era viver com incerteza. Sem saber quanto iriam custar os produtos no futuro, as empresas tinham dificuldade em fazer previsões de negócio e um erro no ajuste de preços poderia determinar perdas substanciais. O mesmo acontecia aos trabalhadores que, ao negociarem salários ao ano, viam o seu salário no final do ano a comprar muito menos coisas do que comprava no início do ano.

No período anterior à entrada no Euro, Portugal baixou drasticamente a taxa de inflação. O ambiente económico tornou-se mais previsível e durante um pequeno período houve um surto de crescimento. Um conjunto de más políticas e circunstâncias externas fez com que o crescimento dentro do euro tenha sido medíocre, mas uma variável continuava melhor do que antes: a inflação. Agora, até essa variável podemos vir a perder.

Todos os economistas preveem aquilo que os consumidores já começaram a sentir: este ano haverá um forte aumento de preços. Antes de mais, é importante referir que este aumento de preços é anterior à guerra na Ucrânia. Em Dezembro de 2021, a Zona Euro já estava com 5% de inflação anual, o valor mais alto da história da moeda. Em Março, este valor já tinha subido para 7,5% e pode não ficar por aqui.

Portugal, com uma economia menos pujante, manteve-se atrás também na inflação, mas ao contrário de outras variáveis económicas é muito provável que nesta a convergência aconteça rapidamente. Isto terá várias consequências.

Em primeiro lugar, todas as pessoas com salários fixos verão o seu salário real (ou seja, aquilo que podem comprar com aquilo que recebem, o salário nominal) reduzir. Pessoas com rendimentos fixos sentem imediatamente na carteira e na vida o efeito da inflação. Aquele dinheiro que lhes servia para comprar muito mais, de repente fica a faltar. Aqueles a quem o salário sobrava até dia 29 podem ver o salário a acabar uns dias antes.

Em segundo lugar, pessoas com as suas poupanças em depósitos à ordem ou a prazo, também verão o valor real desses depósitos baixarem. As taxas de juro continuam próximas de zero e muitas pessoas já andavam insatisfeitas com o rendimento das suas contas poupanças. Em breve terão mais uma razão para ficarem insatisfeitas: o valor dos seus depósitos bancários servirá para comprar menos coisas quando os levantarem do que quando os depositaram. A inflação é um ladrão invisível que absorve o valor real das poupanças, obrigando quem depende delas a ter que trabalhar e poupar mais para recuperar o mesmo valor. Perder 5 ou 6% num depósito à ordem é algo para o qual as pessoas não estão preparadas, mas pode vir a acontecer se as taxas se mantiverem próximas de zero e a inflação subir para valores acima dos 5%, como é provável que aconteça.

Em terceiro lugar, a subida da inflação pode trazer consigo uma subida das taxas de juro de referência, elevando os custos dos empréstimos à habitação de quem tem o seu crédito indexado a uma taxa variável (a maioria das pessoas). Para pessoas com 500/600€ de prestação mensal, isto pode resultar num aumento da sua mensalidade em perto de 1000€. Para pessoas com mensalidades maiores, o aumento poderá ser ainda superior. Muitas pessoas já no fio da navalha preferirão vender as casas a entregá-las ao banco. Mais casas à venda poderão determinar uma queda de preços, o que poderá despoletar ainda mais vendas para os proprietários recuperarem dinheiro enquanto podem. Curiosamente, uma inflação no preço dos consumidores poderá gerar uma correção, ainda que temporária, no crescimento do preço das casas.

Finalmente, a inflação é uma oportunidade para o governo ajustar as contas públicas. O aumento do preço nos consumidores traz mais receitas de IVA e outros impostos indiretos. Fixando a maior componente da despesa (os salários) logo no princípio do ano, qualquer inflação acima do previsto ajudará a manter as contas públicas equilibradas. Sem surpresas, o governo fez uma previsão bastante modesta do que será a inflação este ano. Qualquer subida em relação a esse valor permitirá um brilharete orçamental a Fernando Medina, que bem precisa de brilhar dada a sua fragilidade política.

A inflação está aí. Teremos que viver com ela. Resta saber por quanto tempo.

Carlos Guimarães Pinto

Economista e deputado da Iniciativa Liberal