Este espaço não devia estar a ser escrito por mim

Não devia porque eu, até hoje, sempre encontrei vocabulário que me definisse em vários aspetos da minha vida. Pelo menos naqueles que à identidade de género e à sexualidade dizem respeito. Calhou de serem os mais banais, tive sorte de sempre encontrar na língua as palavras que me definiam.

Neste tema, o espaço deve ser dado a quem ele diz respeito. A quem viveu – e a quem vive – com a certeza de não se identificar plenamente com as definições que a língua – e, portanto, nós –, estabeleceu. A quem quer, precisa, encontrar essa definição porque a necessidade de identidade, de pertença é tão intrínseca como as caraterísticas únicas que fazem de nós o que somos. Porque todos somos algo, alguém. E se as palavras mulher cisgénero ou heterossexual (e uma imensidade de outras, conhecidas e por inventar) me definem, quem sou eu para dizer que alguém tem que se encaixar nas definições que a língua conhece hoje? Se alguém se sente limitado por ter que responder – para corresponder – por um “ele” ou “ela”, sentir atração – romântica ou sexual – por alguém do sexo oposto, parece só natural que a língua siga o caminho que sempre seguiu, e sempre seguirá mesmo que escrevamos rios de textos sobre a sua sacralidade: o da evolução.

Se farmácia deixou de ser com “ph” e grande parte de nós até está a assimilar bem que “ação” ou “batismo” tinham letras a mais, porque não admitir tudo o mais que a língua trouxer para melhor definir a realidade?

Adotemos iles, façamos amigues o mais diferente de nós possível. Acrescentemos as letras que forem necessárias à sigla LGBTQIA+, porque aquele “mais” representa-nos a todos, aposto. Demos espaço e ouçamos a voz de quem se identifica com o L, o T, o I, o que seja, ou a quem ainda não encontrou a sua identidade, a quem nem sequer a procura. É medo do desconhecido? É egoísmo? Pensamento da idade da pedra? Desculpem, o mundo vai evoluir, quer vocês queiram ou não, vão nascer novas definições, novas palavras apesar de todas as vossas atitudes castradoras (ia chamar-lhes opiniões, mas desrespeito pelos direitos de cada um não é opinião. Calha que até é crime, está na lei. É a n.º 38/2018, não vale alegar desconhecimento).

Escrever piadas em jornais não é uma coisa ligeira quando já tudo no dia-a-dia é discriminatório, nada empático, ofensivo.

Mas, entretanto, a vossa limitação está a causar sérios danos nos outros. Em entrevista a um jornal, Carla Moleiro, psicóloga, professora no ISCTE e investigadora em projetos sobre populações socialmente estigmatizadas, lembra que “sendo a autodeterminação da identidade de género um direito de cada cidadã ou cidadão, não caberá a outros validar ou negar a experiência ou identidade de uma pessoa trans por ignorância e preconceito.” E acrescenta que “estas experiências de invisibilização e discurso ofensivo têm impactos na saúde mental das populações LGBTQIA+”. Escrever piadas em jornais não é uma coisa ligeira quando já tudo no dia-a-dia é discriminatório, nada empático, ofensivo.

Porque a identidade de género já existia antes da criação das palavras que hoje usamos para as definir. Só estamos a evoluir, não é uma moda, não é uma fase em que toda a gente resolveu “sair do armário”. Nem a biologia sabe definir tudo ainda.

E nem é coisa de idades. Há uns tempos, ao entrevistar uma criança de sete anos, perguntei-lhe como se chamava. “Gosto que me tratem por Dinis”. Eu fiquei uns segundos a pensar que era óbvio que a ia tratar pelo nome, mas a verdade é que a criança me estava a mostrar a sua identidade, a definição na qual se revia. E eu fiquei com a importância desta ideia e chamar-lhe-ei sempre Dinis.

Uns anos antes, conheci a Dimitri. Nascida em corpo masculino, toda ela uma mulher. Sem operações que não tinha dinheiro para isso, mas o que ela era no interior não deixava margem para dúvidas para quem convivia com ela. Foi vítima da ignorância, da falta de empatia durante anos e a sua saúde mental refletia isso mesmo. Mas ela dançava na rua com os vestidos mais brilhantes e os lábios mais vermelhos porque escolheu não fingir ser o que não era. Guardei um carinho muito grande àquela mulher, fez-me compreender muita coisa e tornou tão fácil dizer “ela”. Porque era o que a Dimitri era. Quando conhecemos as pessoas, quando deixamos de nos fechar em ideias do arco da velha, o nosso mundo só expande.

Façamos, por isso, o esforço por incluir estas novas palavras no nosso vocabulário, que mania temos de determinar as regras e os outros que se adaptem. Que chato seria isto tudo se apenas fossemos ou homens ou mulheres. Se apenas os apostos se atraíssem e perdêssemos o tanto e os tantos que os unem. O mundo a preto e branco é muito aborrecido.

Que maravilha são aquelas paradas pride onde vemos que somos tantos e tão diferentes, que o mundo é maior quando vivemos conforme a nossa vontade e não tentamos caber em caixas quadradas. Não somos todos quadrados, felizmente.

Li algures uma ideia muito importante, a de que muitas pessoas têm convicções fortes sobre o que um homem e uma mulher devem ser. Não são transexuais, não são intersexuais, mas acham-se na posição de falar sobre quem o é, sobre o que é um homem, o que é uma mulher. Eu não sou transexual, calo-me. Pois talvez ajude, dizia essa ideia, “pensar que a nossa interpretação da realidade, cristalizada e reforçada pela língua, é sempre um modelo e que todos os modelos são simplificações”. Como dizia o Bruno Nogueira no “Último a sair”, “o mundo é bué cenas”. Portanto, se vocês não são lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, intersexuais, queer, assexuais…calem-se, por favor. Que a vossa voz seja apenas a da empatia e deixem lá as determinações para quem tem a legitimidade de as definir, como vocês têm de se definir a vocês próprios. Se for para falar, que seja pela defesa, pela empatia, pela luta pelos direitos.

Por fim, se alguém LGBTQIA+ quiser usar a sua própria voz, ofereço o meu espaço aqui. E ofereço o meu silêncio perante a minha ignorância e indignação pela falta de necessidade geral em determinar a vida dos outros. Ofereço a minha vontade de incluir sempre cada vez mais, de usar as palavras que escolherem. Por um mundo “mais” tudo e com todos.

Cláudia Brandão

Colunista