Pelo sonho é que vamos

Reconhecemos que a aposta mais complexa e nuclear da escola moderna é educar para a autonomia e liberdade. São estes valores que vão permitir o desenvolvimento da Pessoa em formação. Não é, de forma alguma, doutrinar tal como aconteceu no passado. Nos últimos tempos, este tema subiu à discussão, através da polémica em torno da disciplina obrigatória de Cidadania e Desenvolvimento (CD) que envolveu alunos e seus pais, não permitindo estes que os seus educandos frequentassem essas aulas. Na verdade, tratando-se da Escola Pública com currículos aprovados, não faz sentido esta decisão por causa de determinados conteúdos, pois poder-se-ia, a partir daqui, pôr em causa muitos outros conteúdos, por exemplo. Além disso, há outras opções a tomar: recurso a escolas privadas…

Esta disciplina autónoma é obrigatória nos 2.º e 3.º ciclos. Os domínios temáticos são atuais e reúnem consensos na civilização ocidental: direitos humanos, igualdade de género, interculturalidade, desenvolvimento sustentável, educação ambiental, saúde, sexualidade (o busílis da questão), media, instituições e participação democrática, literacia financeira e educação para o consumo, segurança rodoviária, risco, empreendedorismo, mundo do trabalho, segurança, defesa e paz, bem-estar animal, voluntariado, entre outros de acordo com o perfil e prioridades da comunidade educativa.

A inexistência de programas ou manuais remetem para orientações criteriosas disponibilizadas no site da Direção-Geral da Educação, sendo atribuída autonomia às escolas para a seleção dos domínios, assim como o formato da abordagem e exploração dos mesmos, no maior respeito e adequação à faixa etária dos discentes.

Recordo que esta disciplina, anteriormente designada por Desenvolvimento Pessoal e Social, pensada para promover a educação para a cidadania, foi também alvo de grande polémica. Pior ainda, ela surgia em alternativa à Educação Moral e Religiosa Católica (EMRC), disciplina facultativa. Descabida de todo esta ideia, pois os conteúdos da disciplina de CD deveriam ser para todos os discentes e, a haver alternativa para os que não optavam pela disciplina de EMRC, deveria ser a existência de outros credos religiosos ou doutrinas, algo que nunca aconteceu. 

O teor e forma de abordagem nesta disciplina de CD, revela-se muito importante na formação dos jovens e na forma como se preparam para ser cidadãos livres, ativos, críticos e interventivos. Nada tem a ver com o doutrinamento. Este, não permite o desenvolvimento da liberdade e autonomia, mas antes a sua manipulação, inculcação, condução cega à aceitação. Neste tipo de instrução pelo doutrinamento, era desejável aprender sem compreender, sem questionar, mostrar apenas um ponto de vista, ensinar a partir de preconceitos. O doutrinamento é um tipo de instrução redutora e anuladora da liberdade humana.

Faço um aparte para realçar que nem todas as doutrinas são doutrinamento. Podemos ensinar uma doutrina sem doutrinar, mostrando, por exemplo, que as crenças dela podem ser discutíveis. Se lhe atribuirmos objetividade que ela não tem, então estaremos a doutrinar. 

Evoco o Pensamento Educacional do professor, poeta e pedagogo Sebastião da Gama, cujo cerne está centrado no crescimento integral do educando e que resume sobre Educar, «é impor-se: o pai ao filho, o professor ao discípulo, o ministro ao cidadão, o catedrático ao aluno, o médico ao doente… A alternativa seria iludir tais ameaças. Não existe essa alternativa. Nascemos para ser “educados”.

Acrescenta “Já que não podemos fugir à manipulação educativa, poderemos limitá-la. É difícil distinguir quando se está a manipular, de quando se está a contribuir para o desenvolvimento da criança, assenta aqui a nossa ideia de doutrinamento técnico. No entanto, a manipulação não deverá, no nosso entender, ir mais além do que o necessário, não esquecendo o respeito pelo aluno e a obrigação de criar seres autónomos e não robôs”.

Revisitar o “Diário” (1926) é uma inspiração! O princípio do pedagogo é “Ensinar é Amar”. Quando se interroga, à maneira socrática, sobre o seu afazer de professor, só encontra uma resposta: o amor. O verdadeiro mestre sabe amar e ser amado, por isso o seu desejo: “o que eu quero principalmente é que vivam felizes”.

Sim, parece que toda a sociedade está preocupada no desenvolvimento de competências cognitivas das futuras gerações para que fiquem bem apetrechadas para os desafios do futuro e, neste ponto, confia plenamente nos professores. No entanto, o mesmo não parece ser valorizado, pelo menos por alguns, quanto à aprendizagem de competências pessoais e sociais – preparar para a cidadania.

Assim, se todos sonhamos com uma sociedade mais harmoniosa, equilibrada e justa, teremos de valorizar estas dimensões para que o sonho de uma sociedade cívica seja uma realidade.

Citando de novo o pedagogo e poeta, no seu poema Sonho que começa assim: “Pelo sonho é que vamos (…). Chegamos? Não chegamos?”  E termina: “Partimos. Vamos. Somos”.

Continuemos, então, a sonhar e a acreditar num mundo melhor e seguramente que a família, a escola e a sociedade têm um papel fulcral. 

Arcelina Santiago

Colunista