A longa marcha para a igualdade

 1. Desde criança que o desporto foi a minha paixão – o desporto jogado e o desporto espetáculo. E, precisamente porque era tão importante na minha vida, tive desde muito cedo a consciência das barreiras que se erguiam às mulheres para a sua prática. Eu podia, em meados do século XX, romper com muitos tabus, podia estudar, tirar um curso universitário, ter uma profissão liberal, ou ser funcionária pública, viajar sozinha pelo mundo, fazer política… Tudo, aparentemente, em condições de igualdade com os rapazes da minha família e geração. Durante a ditadura, é certo que ainda havia carreiras interditas ao sexo feminino, mas, a partir de 1974, caíram todos os obstáculos legais. A Cultura, a Ciência, a Política, abriam as suas portas às mulheres, com o Estado obrigado pela Constituição a promover ativamente a igualdade de facto. Não aconteceu o mesmo no Desporto, em geral, e no futebol, em particular. Pude, assim, no meu tempo de juventude, testar a minha aptidão nos exames do liceu e da universidade, mas nunca saberei até onde poderia ter ido no relvado de um estádio de futebol. Claro que dei os meus pontapés na bola, de brincadeira. Comecei a jogar com rapazes nas ruas de São Cosme de Gondomar. Foi o meu primo Ernesto, o grande “craque” da equipa, quem me impôs, contra a vontade geral. Não queriam meninas, a pretexto de que choravam ao menor encontrão. O Ernesto foi perentório: “A minha prima não chora!” Promessa cumprida. Surgiram frequentes queixas, e nenhuma nesse capítulo. Contra as preconceituosas previsões, eu era muito rápida, entusiasta e sarrafeira. Mais tarde, no Colégio do Sardão, tornei-me organizadora de partidas de futebol feminino. O Colégio, para além das virtudes pedagógicas que faziam a fama das Doroteias, tinha condições admiráveis para o exercício físico. Indoors, com um ginásio enorme, e outdoors com court de ténis, ringue de patinagem, e campo de jogos polivalente para vólei, basquete e andebol – tudo no cenário idílico de uma formosa quinta. Os meus torneios eram clandestinos, disputados em campo durante o recreio. Havia uma vigilante, sempre mais concentrada na leitura de um livro do que nas nossas correrias, o que explicará que, numa longa história de infração e reincidência, só tenha sido denunciada uma vez. Coisa séria…fui chamada à mestra-geral e preparava-me para um pesado castigo. Talvez escrever 500 vezes “o futebol não é para meninas” num caderninho, ou, muitíssimo pior, perder a desejada saída de fim de semana. Tive, porém, uma boa surpresa. A mestra-geral limitou-se a lembrar, em tom benigno, que “o futebol, como sabes, não é um jogo apropriado para meninas”, terminando com uma rara nota de humor: “Em todo o caso, como sei que gostas tanto de futebol, vou abrir uma exceção – tu podes jogar, as outras não”.

2 – Nos anos 50 do século passado, não somente no meu colégio se pensava assim, mas no mundo inteiro! Todos os desportos estavam ao alcance dos homens, enquanto as mulheres tinham acesso restrito aos que eram “apropriados” para elas. A “natureza” feminina, na visão de época, servia de fundamentação para quaisquer limitações impostas por autoridades, instituições, famílias, ou seja, pelos bons costumes. E, por isso, este domínio se tornou, em sociedades democráticas, a última fronteira de uma cultura de desigualdade de género! É, de facto, devagarinho, palmo a palmo, modalidade a modalidade, que o desempenho feminino em desportos antes “proibidos” vai conseguindo arrasar falaciosos preconceitos. Sendo a natureza feminina imutável, o que mudou foi, é claro, a perceção das suas virtualidades… O mais pedagógico exemplo, neste vasto universo, é o dos Jogos Olímpicos da era moderna. Relançados em 1896 por Pierre de Coubertin, foram, tal como na Grécia antiga, vedados a mulheres. Cedendo aos protestos feministas, o Comité Olímpico Internacional (COI), em 1900, permitiu a participação feminina em duas modalidades “apropriadas” a senhoras de sociedade: o ténis e o golfe. Em 1912, a COI juntou-lhes a natação. De alargamento em alargamento, 100 anos depois, chegou a vez do boxe! A partir de 1991, a luta contra a discriminações intensificou-se, a ponto de serem admitidas somente novas modalidades abertas, por igual, aos dois sexos. Em 1996, a Carta Olímpica consagrou expressamente a promoção da igualdade de género. Em 2022, o COI apresentava, finalmente, uma composição igualitária, e, em 2024, nos Jogos de Paris anuncia que a participação de desportistas, mulheres e homens, será rigorosamente paritária e as provas femininas transmitidas, também, em horário nobre…

3 – O futebol anda muito longe deste historial olímpico, da criação de condições para a igualdade de género, estatuto e oportunidades. Talvez por ser desporto e negócio – bilionário, com a Arábia Saudita, esse paraíso da misoginia, a elevar parada constantemente. Ora, é sabido, desporto e negócio são forças que não jogam necessariamente no mesmo sentido, nem, em regra, a favor das mulheres. No retângulo desportivo, os progressos do futebol feminino são extraordinários, como está a evidenciar este espetacular Campeonato do Mundo. Porém, na esfera do poder (FIFA, UEFA, federações), tudo continua como dantes… 

 A “colonização” do futebol feminino por estas entidades de rosto masculino está para durar. Quando se olha o panorama português, a constatação é bem menos chocante do que em outros contextos, porque há ainda um enorme desnível, tanto no futebol praticado por um e outro sexo, como no número de praticantes, desde os escalões de formação. Devemos reconhecê-lo, saudando os esforços de alguns, poucos, clubes, da FPF e, sobretudo, das “navegadoras”, que, logo na primeira jornada do Mundial, tão bem se bateram e foram derrotadas por um golo isolado e bastante duvidoso.

Oposta é a situação nos EUA, o primeiro país no ranking feminino, campeão em título, que ocupa, no ranking masculino, o modesto 11º lugar, sem pretensão a grandes feitos. E, também, a do vizinho Canadá (sétimo no ranking feminino e 47º no masculino…), assim como, num patamar abaixo, a da Austrália (10ª no feminino, 27º no masculino) e da Nova Zelândia (com os homens num 103º lugar e as mulheres ao nível mediano de Portugal, no 22º). Note-se: são, invariavelmente, países onde o futebol está longe de ser o “desporto-rei”.

Num segundo grupo, que começa já a apontar para uma injustificada dependência ou subalternização do desporto feminino, incluiremos aqueles onde o “ranking” do futebol de ambos os sexos é semelhante ou equilibrado: a Inglaterra (quarto nos dois rankings), a Alemanha (segundo no feminino e 15º no masculino, mas com hipótese de reviver momentos de glória), os Países Baixos (nono nas mulheres, sétimo nos homens), os países nórdicos, o Brasil…

Não posso negar que o futebol feminino é, historicamente, tardio, e, de facto, nascido do futebol masculino, (como uma Eva da costela de Adão…), mas acredito que chegou o tempo de traduzir a importância que efetivamente vai ganhando, numa partilha do poder em estruturas federativas, na composição das equipas técnicas, e no estatuto das e dos atletas, das treinadoras e dos treinadores… É de notar que, em 32 seleções presentes neste Mundial, só 12 são treinadas por mulheres (Brasil, Inglaterra, Alemanha, Canadá, Suíça, Itália, Costa Rica, RAS, Noruega, Nova Zelândia, Irlanda e China). Um avanço, se pensarmos que, na primeira Copa feminina, em 1991, havia apenas uma! O ritmo foi aumentando vagarosamente e, apesar disso, nas oito anteriores edições do Mundial, registamos, (feliz acaso?), uma perfeita paridade de vitórias – quatro femininas (duas da Alemanha, duas dos EUA) e quatro masculinas. Há, pois, em 2023, um desempate à vista! Ainda não me atrevo a fazer prognósticos, embora possa, na primeira jornada, destacar as sumptuosas goleadas das brasileiras de Pia Sundhage e das alemãs de Martina Voss-Tecklenburg. 

Para já, limito-me a deixar, aqui, uma sugestão: se gostam de futebol, sem preconceitos de género, não percam os jogos, ou, ao menos, os resumos na televisão!

Manuela Aguiar

Ex-vereadora da CM Espinho e secretária de Estado das Comunidades